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O demônio e suas bruxas

Treinadas por um veterano da Segunda Guerra, japonesas montaram um time de vôlei imbatível e viraram heroínas de um país patriarcal


Quando souberam que o vôlei entraria no programa olímpico em 1964, as jogadoras adiaram a aposentadoria por dois anos. Para as mais velhas, a decisão foi especialmente difícil (Olympic Channel)

O Japão inteiro correu para casa no final da tarde de sexta-feira, 23 de outubro de 1964. Seria a última noite de jogos das Olimpíadas de Tóquio, e nove de cada dez televisores no país transmitiam a final do vôlei feminino entre o time da casa e a União Soviética. A pressão sobre as japonesas era grande: dez das doze atletas jogavam juntas numa equipe que ficara famosa, nos anos anteriores, por ser praticamente imbatível.


Forjado durante mais de uma década, com treinos de até doze horas por dia e menos de uma semana de folga por ano, esse time chamava-se Kaizuka Amazons e pertencia a uma fábrica de tecidos que empregava todas as jogadoras. Depois de dar expediente até às três da tarde, as atletas entravam no inferno particular de Hirofumi Daimatsu, um treinador cujos métodos lhe renderam a alcunha de Oni (demônio).

Veterano da Segunda Guerra Mundial e notório pela sisudez, o japonês chocou jornalistas ocidentais por tratar suas comandadas aos gritos, humilhações e jatos de água fria na cara. Todo dia ele levava o time ao esgotamento físico e psicológico com seu treinamento, projetado para compensar a inferioridade física das atletas diante de russas que ultrapassavam 1,80m de altura.


Um curta-metragem premiado no Festival de Cannes, em 1964, mostra um dia na vida das jogadoras em preparação para a Olimpíada. Saltos, agachamentos e outros fundamentos do vôlei eram repetidos à exaustão. A marca registrada de Daimatsu era o kaiten reshibu, uma manobra em que o atleta mergulha ao chão para defender um ataque e, no mesmo ato, rola na quadra e para em pé. Jogadoras machucaram rins e vértebras até executarem a manobra com perfeição. Estudantes que tentavam imitar o movimento chegaram a quebrar a clavícula.


Trecho do filme "O preço da vitória", da diretora Nobuko Shibuya


Criado nos Estados Unidos em 1895, o vôlei foi introduzido no Japão no início do século 20 e se popularizou entre as meninas - os garotos preferiam o beisebol. Com a derrota na Segunda Guerra e a tarefa de reconstruir o país, o Japão passou a empregar mulheres massivamente em setores como a indústria têxtil, que fomentava o esporte como parte de sua política de amparo às trabalhadoras.

Times de funcionárias, em geral oriundas das classes pobres e rurais, travavam duelos de alto nível contra equipes de estudantes, filhas da elite urbana. Foi nesse cenário que floresceu Masae Kasai, futura estrela da seleção japonesa. Em 1951, aos 17 anos, ela se destacou em um torneio colegial e foi recrutada pela empresa de confecção Nichibo, proprietária do Kaizuka Amazons.


Kasai batia ponto e morava nos dormitórios da empresa, mas tinha a regalia de um emprego de escritório, e não no chão de fábrica. Suas colegas de quarto lhe faziam a cortesia de arrumar a cama e esquentar a água do banho em noites frias, já que os treinos de Daimatsu iam até depois da meia-noite, quando todas já estavam dormindo.

Anos nessa rotina espartana deram frutos no mundial de vôlei de 1960, disputado no Brasil. Desconhecidas no mundo até ali, as japonesas acabaram em segundo atrás das russas, que reinavam absolutas na modalidade. O troco veio dois anos depois, com estilo. Em plena União Soviética, o Japão bateu as anfitriãs e conquistou o mundial de 1962. Dos torcedores locais, encantados com a beleza de seu jogo, elas ganharam o apelido de “Bruxas do Oriente”.


Com a derrota na Segunda Guerra e a tarefa de reconstruir o país, o Japão passou a empregar mulheres massivamente em setores como a indústria têxtil, que fomentava o esporte como parte de sua política de amparo às trabalhadoras

Forjado durante mais de uma década, time treinava até doze horas por dia, com menos de uma semana de folga por ano (Olympic Channel)

Com o título mundial na bagagem, a maioria das jogadoras quis se aposentar. Sentiam não ter mais nada a conquistar no esporte e entravam na faixa dos 25 anos, idade tida pelos japoneses da época como ideal para arrumar casamento e ter filhos.


Naquele ano, no entanto, o Comitê Olímpico Internacional havia anunciado que o vôlei feminino faria sua estreia nos Jogos de 1964. Torcedores de todos os cantos do país imploraram às campeãs para que aguentassem até a Olimpíada, enviando mais de 5 mil cartas com esse apelo. Para a capitã Kasai, que já teria 31 anos em 1964, a decisão de adiar o futuro por mais dois anos foi especialmente difícil.


Feitos os preparativos, as japonesas ainda tomaram um susto às vésperas dos Jogos. A Coreia do Norte, um dos seis classificados para o torneio feminino, boicotou o evento devido a uma briga com o COI. Com o torneio ameaçado de cancelamento por falta de participantes, os japoneses pagaram um milhão de ienes à Coreia do Sul para que montasse um time às pressas e o enviasse a Tóquio.


Em quadra, as japonesas atropelaram todas as adversárias e as soviéticas fizeram o mesmo, até se encontrarem na final. O Japão venceu os dois primeiros sets com autoridade, por 15-11 e 15-8. No terceiro, abriu uma dianteira de 13-6 quando a pressão pela vitória se materializou. O time, nervoso, viu a vantagem encolher para 14-13, até que Daimatsu pediu tempo para esfriar os ânimos. Funcionou: as oponentes erraram e o Japão fechou em 15-13. Enquanto as atletas se abraçavam e choravam de alívio pela missão cumprida, o treinador permaneceu no banco de reservas, sem qualquer esboço de sorriso.


Enquanto as atletas se abraçavam e choravam de alívio pela missão cumprida, o treinador permaneceu no banco de reservas, sem qualquer esboço de sorriso.

Transformadas em celebridades, as jogadoras foram recebidas pelo primeiro-ministro japonês, Sato Eisaku. Na reunião, mencionaram o sacrifício que as havia impedido de constituir família e o mandatário prometeu ajudar. Kasai, a mais velha da equipe, cujo pai havia morrido três meses antes da Olimpíada sem realizar o sonho de vê-la noiva, recebeu atenção especial da imprensa.


A despeito dos rigores com que tratava suas campeãs, o treinador Daimatsu era respeitado por elas como um pai. Nessa condição, ele começou a participar dos miai, encontros arranjados entre as atletas e seus potenciais maridos. Daimatsu estava lá quando Kasai tomou seu primeiro chá com Kazuo Nakamura, um militar apresentado a ela pela esposa do primeiro-ministro. Os dois se casaram em maio de 1965.


Daimatsu, após a vitória olímpica, ainda passou um tempo na China ajudando a desenvolver o vôlei no país, mas logo entrou para a política. Seu livro de autoajuda, Ore ni tsuite koi (“Siga-me”), já era um best-seller antes mesmo dos Jogos de 1964. O treinador foi uma figura popular até morrer de infarto em 1978, aos 57 anos. Kasai, por sua vez, manteve-se ligada ao esporte, virou dirigente e viveu oito décadas. Em setembro de 2013, um mês antes de morrer, parabenizou a cidade de Tóquio, recém-escolhida para sediar as Olimpíadas pela segunda vez.


Kasai, a mais velha da equipe e cujo pai havia morrido três meses antes da Olimpíada sem realizar o sonho de vê-la noiva, recebeu atenção especial da imprensa (KYODO)

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