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Na ponta da espada

Dois duelos de esgrima nos Jogos de Paris-1924 não acabaram bem. Quando a diplomacia falhou, brigões acharam outra via para resolver as diferenças


O diatador Benito Mussolini (direita) era entusiasta da esgrima. Em 1921, antes de chegar ao poder, ele duelou com um jornalista que o desagradou e feriu seriamente o rival (Reprodução)

Um quartel militar em Nagykanisza, cidade húngara próxima da fronteira com a Iugoslávia (hoje território da Croácia), foi palco de um encontro tenso no dia 12 de novembro de 1924. Os esgrimistas Oreste Puliti, da Itália, e György Kovács, da Hungria, queriam resolver com sangue um conflito aberto quatro meses antes, durante os Jogos Olímpicos de Paris. Acompanhados de assistentes, cercados de espectadores e munidos de pesados sabres, os dois trocaram mais de 30 estocadas durante uma hora e meia até a luta acabar empatada por acordo mútuo. Bastante feridos, apertaram as mãos e voltaram para casa.


O duelo foi o desfecho de uma briga iniciada na prova olímpica do sabre masculino, em julho daquele ano. Após duas rodadas classificatórias, 12 esgrimistas haviam chegado à final. Nove deles representavam as três maiores potências do esporte naquele tempo: Itália (quatro atletas), Hungria (três) e França (dois). Pelas regras da época, todos os finalistas se enfrentavam e aquele com mais vitórias levava o ouro.


Isso permitia que países dominantes, com vários nomes na disputa, fizessem jogo combinado: a equipe apostava em um integrante e os colegas entregavam suas lutas para o escolhido, que saía invicto e descansado dos embates contra os compatriotas.


Favorito ao pódio, Puliti começou vencendo facilmente os colegas de time. O árbitro Kovács, no entanto, viu ilegalidade no corpo mole dos italianos e foi confrontado por Puliti. Depois de horas debatendo as duas acusações (o jogo de compadres e o comportamento de Puliti, que teria ameaçado Kovács) o júri decidiu eliminar o italiano. Em protesto, toda a equipe se retirou do ginásio sob um hino fascista entoado pelos torcedores – o país já vivia sob o comando de Benito Mussolini, que instalaria uma ditadura no ano seguinte.


Dois dias depois, com a competição já encerrada, Puliti encontrou o desafeto por acaso no Folies Bergère, um cabaré parisiense que vivia o auge de sua fama e pomposidade. Depois de ouvir uma série de impropérios, Kovács limitou-se a responder que não falava italiano. Puliti, então, adotou uma comunicação mais direta e acertou um soco no rosto do rival. O húngaro não revidou, mas decidiu em conversa com os colegas, ali mesmo, desafiar o italiano formalmente para o duelo, que ficou acertado após uma troca de cartas.


Dono de três ouros olímpicos, Aldo Nadi (de costas) duelou contra o jornalista Adolfo Cotronei em 1924 (Reprodução)

De pai para filho


Ainda não era raro, na primeira metade do século 20, que esgrimistas extrapolassem a fronteira esportiva e acertassem rixas pessoais na ponta da espada. Puliti e Kovács, por exemplo, eram membros de aristocracias com valores militares, famílias que viam a honra como algo a ser mantido imaculado.


Um dos primeiros campeões da modalidade, o húngaro Péter Tóth nunca tinha tocado em uma espada até os 15 anos, quando brigou com um colega de escola. Os dois marcaram um duelo para o final daquele ano, após as provas, e nesse ínterim Tóth matriculou-se em uma academia. Sua evolução foi tão acentuada que o rival preferiu cancelar o confronto.


Tóth ganhou sua primeira medalha de ouro na prova de sabre por equipes nos Jogos de 1908, em Londres. Daquele mesmo torneio participou Jean-Joseph Renaud, um francês entusiasta da esgrima que, além de escrever livros e artigos sobre a modalidade, promovia duelos clandestinos. “Geralmente os dois oponentes estão tão nervosos que ninguém sai ferido, o herói ofendido aplaca sua honra e todos vão embora felizes”, dizia.


Os Jogos de Paris em 1924 foram os últimos que deram origem a uma luta real, mas a despedida foi em dose dupla: o árbitro György Kovács, o mesmo que enfrentou Puliti na história contada acima, foi o pivô de outra briga que descambou para um conflito após a Olimpíada.


Na final do florete por equipes, Kovács supervisionava um combate entre o francês Lucien Gaudin e o italiano Aldo Boni. Com a luta empatada em 4x4, Kovács concedeu um ponto controverso e decisivo a favor do francês. Boni reagiu com indignação e Kovács, dizendo-se ofendido, exigiu desculpas formais do italiano. O treinador Italo Santelli, que vivia na Hungria por quase três décadas, foi chamado como intérprete e testemunha da briga. Santelli deu razão a Kovács, o que levou todo o time da Itália a bater em retirada.


“Geralmente os dois oponentes estão tão nervosos que ninguém sai ferido, o herói ofendido aplaca sua honra e todos vão embora felizes”, escreveu o esgrimista francês Jean-Joseph Renaud, sobre os duelos clandestinos que promovia

Terminadas as Olimpíadas, Santelli passou a ser chamado de traidor pela imprensa italiana. O esgrimista Adolfo Cotronei, que também era editor do jornal Gazzetta dello Sport, escreveu um texto áspero pedindo “o exílio perpétuo desse inimigo de nosso país”. Atacado, o mosqueteiro ítalo-húngaro desafiou Cotronei, que tinha seis duelos no currículo, e a proposta foi aceita na hora.


Para lutar foi preciso conseguir autorização de Mussolini, que já havia ele mesmo proposto – e vencido – um duelo contra um jornalista cujo texto o havia desagradado, em 1921. O aval foi concedido, mas Santelli, aos 58 anos, acabou substituído pelo filho Giorgio, de 26, devido à idade avançada. O combate foi marcado para Abbazia, uma pequena cidade italiana às margens do Mar Adriático que hoje pertence à Croácia.


Os italianos se encontraram com sabres na mão no dia 28 de agosto. Com dois minutos de combate, Santelli filho acertou um golpe próximo ao supercílio de Cotronei, que jorrou sangue o suficiente para convencer os médicos a encerrarem a luta.


O vencedor do confronto, que mais tarde emigrou para os Estados Unidos e virou uma referência da esgrima no país, falaria sobre o episódio anos depois, para o jornal The New York Times. “Se duas pessoas não se falam devido a uma divergência, desafiam-se para um duelo, e à noite voltam a falar cordialmente”.

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