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A líder do motim (parte 1)

Como uma corredora chinesa libertou a si mesma e às colegas das mãos de um treinador abusivo

A família de Wang Junxia escondeu dela que o irmão morreu atropelado. Sem saber da tragédia, a corredora bateu dois recordes mundiais, um dos quais persistiu por 23 anos (Tencent sports)

Esta é a primeira de duas partes de uma reportagem especial. Leia a segunda parte na próxima quinta-feira (10/06)


As corredoras Qu Yunxia e Wang Junxia tinham muito em comum. Filhas de camponeses, nascidas na mesma região, treinavam lado a lado e tinham 20 anos quando escreveram uma página na história do atletismo. Competindo em Pequim em setembro de 1993, elas quebraram três recordes mundiais num período de cinco dias. As marcas foram tão arrasadoras que só seriam superadas duas décadas depois.


Ambas as jovens saíram do anonimato um mês antes, no Mundial de Atletismo em Stuttgart, na Alemanha. Com um retrospecto desprezível em corridas de longa distância até ali, a China levou seis das nove medalhas em disputa nas provas de 1500, 3 mil e 10 mil metros, incluindo os três ouros. Cada medalha foi para o peito de uma atleta diferente.


Impressionada com aquela súbita explosão de campeãs, a crônica esportiva ocidental logo descobriu que quase todas treinavam sob a supervisão do mesmo homem, o técnico Ma Junren. A equipe era composta por cerca de quinze garotas, com idade em torno dos 18 anos, e representava a província de Liaoning, no nordeste da China. O sucesso do grupo já vinha chamando atenção da imprensa chinesa, que cunhou o apelido de "Exército de Ma" em alusão ao treinador.


Junren não era um comandante militar, mas agia como se fosse. Nas coletivas de imprensa após as vitórias no mundial, ele criou o hábito de atalhar as respostas das atletas ou respondia no lugar delas, deixando-as falar o mínimo possível. O técnico gabava-se de impor um treinamento extenuante, que as obrigava a correr o equivalente a uma maratona por dia. As fundistas acordavam às 4h30, faziam 23 km antes do almoço e mais 20 km à tarde. De bicicleta, Junren seguia as atletas e controlava seu ritmo passo a passo.



Os recordes de setembro de 1993 foram registrados durante os Jogos Nacionais da China. Desconhecido no restante do mundo, o evento é palco de uma feroz competição entre as províncias. A disputa interna, de alto nível, é estimulada pelas autoridades centrais, que canalizam mais atenção e recursos para o esporte às regiões com melhores resultados.


Foi lá que Junxia correu os 10 mil metros em 29 minutos e 31 segundos, uma marca 42 segundos mais rápida que o recorde mundial da época, em vigor havia sete anos. Era como se a chinesa tivesse cruzado a linha de chegada quase 300 metros à frente da recordista anterior. Chegou-se a especular que a arbitragem tivesse errado a contagem de voltas e encerrado a corrida antes do fim.


Desempenho tão estonteante logo acendeu nos estrangeiros a suspeita de que as atletas corriam sob efeito de doping. Desalojadas do pódio que costumavam frequentar, corredoras europeias e norte-americanas faziam coro aos céticos que duvidavam, em declarações públicas, da integridade daquela avalanche repentina de recordes.


Nenhuma das chinesas, porém, jamais foi flagrada em qualquer teste e a Federação Internacional de Atletismo logo ratificou as marcas obtidas em Pequim. Falastrão, Ma Junren não só negava as acusações como prometia mais. “Alguns dizem que nós quebramos o recorde com muita folga”, disse ele após Junxia podar 42 segundos do recorde dos 10 mil metros. “Pois eu acho que foi por muito pouco”.


Atletas chinesas em 1993: o treinador retinha os prêmios conquistados por elas (Reprodução)

Segundo capítulo


Passados os Jogos Nacionais da China, Ma Junren e suas recrutas viraram celebridades no país. Figuravam no noticiário com alguma frequência, mas as informações chegavam ao exterior com atraso e incompletas. O treinador se mantinha em evidência não só pelos resultados nas pistas, mas também por uma infinidade de brigas com os dirigentes de Liaoning.


Entre outros motivos, as autoridades se irritaram quando o treinador vendeu a receita de um tônico herbal nativo que ele mesmo preparava e dava às ateltas. Na véspera da virada para 1994, Junren reuniu-se com um grande empresário do ramo das bebidas e fechou o negócio por 10 milhões de yuans, cerca de 1,73 milhão de dólares à época.


A tal infusão ficou famosa no exterior porque o próprio técnico a promoveu em entrevistas durante o mundial de 1993. Sentado à mesa com suas atletas, de frente para os jornalistas, ele levantou uma caixinha de papelão e declarou que aquele era um dos segredos do sucesso do time. Segundo o jornal Los Angeles Times, tratava-se do extrato do fungo de uma lagarta que crescia na China em grandes altitudes, durante o verão, e morria no inverno, quando era colhida pelos agricultores. Transformada em pó, a substância era misturada a outras ervas e consumida em forma de chá. Dizia-se que fortalecia os pulmões e era recomendável para pessoas com asma.


Junren costumava reter uma parte ou todo o dinheiro das premiações conquistadas pelas atletas em competições de pista e corridas de rua, dentro e fora da China. Ficou até com três carros Merecedes-Benz que suas comandadas ganharam por suas vitórias no mundial em Stuttgart. Uma atleta chinesa do arremesso de martelo, que não treinava com a equipe, também levou o ouro na Alemanha e vendeu seu veículo, no exterior, por 40 mil dólares. Mas o técnico decidiu despachar os veículos de suas atletas para a China, de navio, e passou a usá-los no dia a dia.


Apesar do sucesso à beira das pistas, o treinador não tinha nenhum histórico de atleta. Nascido em 1944, Ma Junren viveu a infância e a juventude sob o impacto da ditadura de Mao Tsé Tung, que atingiu o ápice da brutalidade e caos econômico no início da década de 1960. Quinto de nove irmãos, largou a escola e a casa da família na zona rural, aos 14 anos, para trabalhar conduzindo carruagens na cidade de Anshan, no nordeste chinês. Era especialmente habilidoso em montar e domar cavalos hostis.


Alistado ao Exército, trabalhou como agente penitenciário até 1970, quando fez um curso de educação física e descobriu sua vocação. Passou a maior parte dos anos 80 dando aulas para estudantes pobres, que corriam descalços. Em entrevistas, contava que desenvolveu suas técnicas de treinamento em corridas observando o movimento de cervos, pássaros e outros animais. Assumiu a equipe da província de Liaoning em 1988, implementou seu estilo de trabalho e começou a colher os frutos. Dois anos depois, suas corredoras já ganhavam medalhas no Mundial sub-20 de atletismo.


O que o público ignorava, naqueles tempos de glória, é que Junren era muito mais do que um treinador rigoroso. Com controle sobre o que as atletas vestiam, comiam ou faziam nos momentos de folga, ele exercia um domínio quase absoluto sobre a vida delas.


As corredoras moravam todas juntas no centro de treinamento da equipe em Shenyang, capital da província de Liaoning. Lá era proibido ver TV, ouvir música ou ler. Revistas, livros ou jornais encontrados pelo alojamento eram rasgados furiosamente pelo treinador diante dos olhos das proprietárias.


Certa vez, Junren confiscou os toca-fitas que as atletas haviam comprado com árduas economias. Reuniu todos sobre uma mesa, tomou nas mãos um martelo e reduziu os aparelhos a uma pilha de plástico moído. Toda a correspondência que saía ou entrava do prédio também era controlada pelo técnico, que não deixava as lideradas sequer ligarem para a família sem o seu conhecimento.


Roupas da moda também não eram permitidas porque, segundo o técnico, serviriam para as atletas seduzirem os poucos homens que treinavam no local. Pelo mesmo motivo, até o uso de sutiãs era vetado. Nas vésperas de uma competição, várias integrantes do time aproveitaram uma ida à cidade para comprar as peças íntimas. Quando descobriu, Junren enfileirou todas no pátio e arrancou os sutiãs das moças, um por um.


Infrações aos mandamentos, grandes ou pequenas, costumavam ser punidas com safanões e descomposturas. Mas nem era preciso cometer uma transgressão para ser alvo de violência. Insatisfeito com uma novata num treino qualquer, o técnico empurrou a garota numa poça de lama e a perseguiu, entre sopapos, até forçá-la a subir numa árvore.


A primeira a perder a paciência foi Liu Dong, 20 anos, campeã mundial dos 1500 metros. De família pobre, Dong era irrequieta e era alvo da antipatia do técnico por desobedecer a dois de seus caprichos. Ele proibia as garotas de namorarem e as obrigava a manter o cabelo curto, à tigela, mas a corredora não só ostentava um curto rabo de cavalo como tinha um relacionamento com um popular velocista chinês.


Cansada dos abusos, Dong pediu demissão no dia 30 de setembro de 1993. O grupo estava num hotel, de malas prontas para uma excursão ao planalto de Yunnan, no sudoeste do país, onde passaria um mês treinando na altitude. Ao ouvir o pedido de renúncia, Ma teve um acesso de fúria, subiu até o quarto da atleta no quinto andar e atirou, pela janela, toda a bagagem da atleta, inclusive um troféu. Dong foi deixada para trás sem nenhuma ajuda de custo para voltar à sua cidade natal, a milhares de quilômetros dali.


A cada novo ritual humilhante, o treinador esticava um pouco mais a corda das corredoras, que já estavam fartas de tudo.


Junren era muito mais do que um treinador rigoroso. Ele controlava o que as atletas vestiam, comiam ou faziam nos momentos de folga (Reprodução / Running Heroes)


Terceiro capítulo


Em julho de 1994 a equipe mudou-se, contra a vontade das atletas, para um novo centro de treinamento em Dalian. A cidade, litorânea, passava por um salto de desenvolvimento, mas fica a 400 km da capital da província. As corredoras foram alojadas nos austeros dormitórios do prédio, mas Ma Junren recebeu do governo um confortável apartamento nas redondezas, onde foi morar com a esposa.


Embora tenha desagradado o time, a novidade alegrou os pais de Wang Junxia, que moravam na zona rural de Dalian. Para a grande estrela da equipe, seria mais fácil visitar a família, algo raro quando ela treinava em Shenyang.


Um ano antes da mudança, num desses breves encontros, Junxia passou um tempo na companhia dos pais na véspera do Mundial de Atletismo e dos Jogos Nacionais da China. No dia de retornar ao alojamento, ganhou uma carona do irmão mais velho até a estação de trem, de onde viajaria de volta para Shenyang. Foi a última vez que os dois se viram. Dias depois, ele morreria atropelado no trânsito de Dalian.


Ainda em luto, o pai da atleta tomou uma decisão difícil. No primeiro telefonema para a filha depois da tragédia, disse a ela que estava tudo bem. Sem saber da morte do irmão, Junxia foi campeã mundial na Alemanha e destroçou dois recordes mundiais no mês seguinte. Foi só no final de outubro, às vésperas de uma maratona na Espanha, que ela finalmente foi informada do acidente.


Mesmo em choque, Junxia correu e venceu. Mais tarde, perguntada sobre o episódio, declarou ter ficado devastada com a perda do irmão, que era muito querido, e justamente por isso entendeu a intenção dos pais em poupá-la das más notícias antes das competições mais importantes da carreira dela até ali. “Fizeram a coisa certa”, disse.


Wang Junxia nasceu em 19 de janeiro de 1973 numa vila rural na província de Jilin, no nordeste da China. Caçula de três filhos, tinha 9 anos quando a família mudou-se para o litoral e o pai começou a ganhar a vida como pescador. Junxia ajudava a família a criar moluscos, mas teve uma infância livre, correndo e brincando na praia.


Acostumada a competir contra meninos desde pequena, teve descoberto o talento para o atletismo ainda na escola. Aos 19 anos, superou adversárias da Etiópia e do Quênia para vencer os 10 mil metros no Mundial sub-20 em Seul. Aquela competição marcou o desabrochar internacional da equipe de Junren, cujas atletas venceram todas as corridas entre os 800 metros e os 10 mil.


Passadas as vitórias e recordes arrasadores de 1993, Wang Junxia começou a sofrer uma queda de desempenho, como toda a equipe. Na virada para 1994, a China teve um inverno especialmente rigoroso, o que contribuiu para a equipe cancelar um treino na altitude e competir menos do que o planejado. Quando corriam, as atletas passavam longe dos recordes do ano anterior. Com medo de maus resultados, Junren vinha cancelando a participação do grupo em alguns eventos internacionais.


A queda no desempenho tornava o técnico mais e mais intratável, dado a explosões de raiva por qualquer motivo. Num desses rompantes,com a justificativa de mantê-las focadas nos treinos, ele queimou o dinheiro que algumas atletas tinham recebido como prêmio numa competição. O episódio foi especialmente traumático para as moças, que contavam com aquela renda para ajudar as famílias.


O clima no centro de treinamento de Dalian era fúnebre. Junxia,que registrava suas impressões num diário, no início de dezembro, que estava à beira da loucura e não aguentava mais treinar. Aos 21 anos, era uma das veteranas do grupo e virou uma liderança natural por força de seus resultados nas pistas, que a transformaram em figura popular na China, mas sentia não ter forças para continuar.


Continua

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