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O campeão calcificado

Ginasta soviético ganhou quatro medalhas três anos depois de bater o carro e quase perder uma perna


Depois de picar a perna em mais de 40 pedaços, Bilozerchev ouviu dos médicos que sua carreira estava acabada. (Evgeny Stetsko - 1988 Photo Sports)

A carreira do ginasta soviético Dmitri Bilozerchev, de 18 anos, parecia irremediavelmente encerrada na noite de 13 de outubro de 1985. Talento precoce, campeão mundial ainda adolescente, Bilozerchev dirigia com três colegas pelas ruas de Moscou de volta ao Clube Central de Esportes do Exército (o atual CSKA), onde treinava em regime de concentração. Era uma ocasião feliz. Na véspera, numa festa no apartamento da família, o ginasta havia acabado de tornar-se noivo. Os pais da garota, uma patinadora um ano mais nova que ele, viajaram do interior para encontrar o genro pela primeira vez.


Na comemoração, “Dima”, como era chamado, bebeu champanhe além da conta e resolveu tomar o carro do pai emprestado. Havia tirado carteira de motorista dias antes. No trajeto, debaixo de forte chuva, perdeu o controle do veículo e acertou um poste de luz. Os passageiros não se feriram, mas o ginasta ficou com o pé esquerdo preso entre o freio e a embreagem. Com o choque, os pedais se uniram com violência e picaram a perna de Bilozerchev em mais de 40 pedaços, pouco acima do tornozelo.


A primeira impressão dos médicos nos dias seguintes à tragédia era de que a perna deveria ser amputada. Mesmo após o descarte da medida drástica, a perspectiva era demolidora: o atleta provavelmente voltaria a andar, mas seus dias como ginasta de nível internacional estavam acabados.


Considerado má influência para os jovens, Bilozerchev foi suspenso por um ano pelos dirigentes locais. "Fui abandonado não apenas pela comunidade da ginástica, mas pela sociedade".

Bilozerchev havia saído do anonimato em 1983, dois anos antes do acidente, quando venceu a prova individual geral no Campeonato Mundial em Budapeste, na Hungria. Aos 16 anos, era o homem mais jovem da história a ganhar esse evento, considerado o mais importante porque combina apresentações nos seis aparelhos. Ainda menor de idade, Dima era o ginasta mais completo do mundo.


A consagração poderia ter ocorrido nas Olimpíadas de 1984, em Los Angeles. Três meses antes dos Jogos, contudo, a União Soviética anunciou um boicote à competição e deixou os atletas em casa. Dima seguiu treinando. No ano seguinte, quatro meses antes de quase perder a perna, ele havia levado seis dos sete ouros em disputa no Campeonato Europeu em Oslo, na Noruega.


Bilozerchev tinha só 16 anos quando foi campeão mundial pela primeira vez. Bateu o carro, quase perdeu a perna, mas voltou e recuperou o título (General Dutch Press Agency - ANeFo)

O acidente mudou tudo. Considerado má influência para os jovens, o ginasta foi suspenso por um ano pelos dirigentes locais – uma punição inócua dada a gravidade da lesão, mas com peso simbólico. "Tivemos que mostrar que estávamos indignados", disse à época Yuri Titov, então secretário-geral de esportes da União Soviética. "Tínhamos que cuidar de nossa reputação e dar um exemplo para os outros", completou. "Fui abandonado não apenas pela comunidade da ginástica, mas pela sociedade", disse Bilozerchev ao jornal The New York Times em 1988.


A retomada dos treinos foi lenta. De início, o atleta limitou-se aos aparelhos que exigiam força essencialmente nos braços, como as argolas e o cavalo com alças. Quando aventurou-se no solo e no salto sobre o cavalo, um novo problema: procurando poupar a perna atingida, a esquerda, deixava todo o impacto dos exercícios sobre a direita. O resultado, em dezembro de 1986, foi uma lesão no tornozelo direito, que exigiu uma nova cirurgia e mais alguns meses de descanso.


Em vista do histórico, foi um assombro para o mundo da ginástica quando Bilozerchev recuperou o título mundial em 1987, em Roterdã, na Holanda. A vitória elevou o russo, agora com 21 anos, ao posto de favorito para vencer as Olimpíadas de Seul no ano seguinte.


Seu maior concorrente ao ouro na Coreia do Sul era o colega de equipe Vladimir Artemov. A disputa vinha acirrada até que Bilozerchev cometeu um erro crucial em seu aparelho predileto, a barra horizontal. Ao tentar uma manobra com um só braço na barra, rotina criada e aperfeiçoada por ele mesmo, o ginasta perdeu o equilíbrio e caiu com o peito sobre o aparelho. Recuperou-se, mas alcançou apenas o bronze no individual geral, atrás de dois soviéticos. Como consolo, levou três ouros: no cavalo com alças, nas argolas e na prova por equipes.


A carreira de Bilozerchev acabaria de forma polêmica menos de um ano após as medalhas de Seul. Em agosto de 1989, o Sovetsky Sport – diário esportivo oficial da URSS – informou que Dima e um colega haviam sido punidos devido “a uma bebedeira de dois dias” e excluídos da equipe que disputaria o Campeonato Mundial. Aos 22 anos, Bilozerchev aposentou-se. Em 1993, já passada a queda do Muro de Berlim, mudou-se para os Estados Unidos. Hoje, aos 54 anos, treina jovens ginastas no estado do Oregon.



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