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Camaleão de Tóquio

Impedido de lutar judô pela ocupação americana, japonês se reinventou na luta livre e ganhou o primeiro ouro do país no pós-Segunda Guerra


Shohachi Ishii tinha 19 anos quando seu esporte, o Judô, foi praticamente jogado à clandestinidade pelas autoridades de ocupação americanas e pelo novo governo local. O atleta migrou para a luta livre e foi campeão olímpico sete anos depois (Reprodução)

Corria o mês de abril de 1950 quando o então ministro da educação do Japão, Sotaro Takase, enviou uma carta ao general Douglas MacArthur, chefe das forças aliadas que dominavam o país asiático desde o fim da Segunda Guerra Mundial. No texto, o ministro pedia autorização do fardado americano para recolocar o judô na grade curricular das escolas. Assim como outras artes marciais nativas, a modalidade estava banida do sistema educacional e destituída de apoio oficial desde a rendição japonesa, cinco anos antes.


O fim do banimento foi uma excelente notícia para os milhões de lutadores do país, mas chegou tarde demais para um estudante universitário de Tóquio. Shohachi Ishii, um judoca de sucesso em seus anos de ensino médio, tinha 19 anos quando seu esporte foi praticamente jogado à clandestinidade pelas autoridades de ocupação estrangeiras e pelo novo governo local, que se mobilizaram para eliminar todos os traços de militarismo e nacionalismo exacerbado da sociedade japonesa.


As artes marciais foram alvo dessa reforma em dois atos. Primeiro, ainda em 1945, as escolas aboliram disciplinas populares, como o judô e o kendô – luta inspirada nos duelos de espadas dos samurais –, mas também o caratê, o jiu jitsu, o sumô e outras lutas disseminadas pelo arquipélago.


No ano seguinte, mandaram fechar o Dai Nippon Butoku Kai: a Grande Casa das Excelências Marciais do Japão. Era uma gigantesca academia do governo que, por meio de múltiplas filiais que chegavam até ao exterior, controlava e organizava as artes marciais no país. O judô e as outras lutas nunca foram criminalizados, mas ficaram praticamente inacessíveis sem as escolas e o clube que acolhia quase todos os praticantes.


Nos dois lugares – a escola e o clube –, as artes marciais tinham sido gradativamente cooptadas pelo espírito belicista que tomou o Japão nas décadas antes da Segunda Guerra. O Butoku Kai era dirigido por militares aposentados desde 1916 e centenas de professores eram ligados ao exército. Durante a guerra, as aulas de educação física não aplicavam apenas artes marciais, mas também marchas militares, escalada de paredes e arremesso de granadas. Tudo isso foi varrido no pós-guerra.


Muitos dos grandes judocas do país caíram em desgraça no dia 4 de janeiro de 1946, quando o governo provisório capitaneado pelos EUA emitiu a Diretiva 550. Era uma norma que determinava "a remoção e exclusão da vida pública de pessoas militaristas e ultranacionalistas". Cerca de 1,3 mil instrutores do Butoku Kai foram enquadrados nesse perfil e expurgados dos cargos que ocupavam.


Nas escolas, o vácuo deixado pelas artes marciais foi preenchido com esportes importados, especialmente os coletivos. Nesse movimento, ganhou espaço a luta livre, uma criação europeia que fazia sucesso nos EUA mas ainda não tinha muitos adeptos no Japão.


E foi para essa modalidade que um despretensioso Shohachi Ishii migrou quando não tinha mais onde praticar judô. Era um atleta destacado, embora não levasse os treinos muito a sério até o começo de 1951, quando integrou uma excursão de lutadores aos EUA. Na viagem de três meses, Ishii somou 21 vitórias em 23 combates e seus treinadores perceberam que tinham ali um potencial campeão olímpico.


Aí deu-se uma curva de devoção. Boêmio, Ishii não só cortou completamente o cigarro e a bebida como também a mostarda, o café e outros alimentos que achava que o fariam mal. Sob tal rotina monástica, o japonês chegou na ponta dos cascos a Helsinque, na Finlândia, para as Olimpíadas de 1952.


Muitos dos grandes judocas do Japão caíram em desgraça no dia 4 de janeiro de 1946, quando o governo provisório capitaneado pelos EUA determinou "a remoção e exclusão da vida pública de pessoas militaristas e ultranacionalistas". Cerca de 1,3 mil mestres de artes marciais foram enquadrados nesse perfil e expurgados dos cargos que ocupavam

O Japão voltava aos Jogos após um hiato de 16 anos: a Segunda Guerra cancelou o evento em 1940 e 1944, e os asiáticos, responsabilizados pelo conflito, não foram convidados para a edição de 1948, em Londres. Esperava-se que o primeiro triunfo japonês na Finlândia viesse da natação. Dos 15 ouros que o Japão conquistara antes da guerra, 10 tinham sido pelas braçadas de nadadores adolescentes que transformaram o país numa potência da modalidade. Em 1952, porém, eles pescaram apenas três pratas das piscinas.


Ishii, por seu turno, reinou absoluto na categoria peso-galo, para atletas de até 57 quilos. Foram sete lutas e sete vitórias. Na final, ele atropelou por 3 a 0 um atleta da União Soviética, país que estreava em Olimpíadas, mas já tinha a equipe mais forte na luta livre.


Quando o lutador voltou ao Japão com o título na bagagem, o judô já estava novamente nos programas escolares. À medida em que o país se reconstruía da derrota na guerra e superava os problemas urgentes, como a fome, mais e mais judocas pressionavam pelo retorno da modalidade ao tratamento de outrora. O esporte voltou às escolas em 1950 e consagrou-se 14 anos depois, quando alcançou status olímpico.


O ouro de Ishii foi o primeiro e único ouro do Japão nas Olimpíadas de 1952. Mas abriu uma trilha de sucesso: hoje o wrestling – que abrange a luta greco-romana, além da luta livre – é o segundo esporte que mais rendeu medalhas de ouro aos japoneses na história. Foram 32, número inferior apenas às 39 do judô. Nas Olimpíadas do Rio, em 2016, as mulheres japonesas levaram quatro dos seis ouros em disputa na luta feminina.

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