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Uma nova estrela no mapa

Corredor do Burundi precisou fundar o próprio comitê olímpico para realizar sonho de oito anos e participar dos Jogos

Kwizera, de bandeira em punho: em Atlanta, lhe perguntavam sobre a guerra, mas ele não dava corda [Reprodução / Olympic Channel]

Um grupo de corredores do Burundi, nação pequena e densamente povoada na África central, lia atentamente os jornais no dia 26 de julho de 1996. A equipe estava em Atlanta, nos Estados Unidos, pronta para competir na Olimpíada dali a alguns dias, quando recebeu notícias nada alvissareiras: uma junta militar tinha enxotado o presidente e dado um golpe de estado, inaugurando mais uma página violenta na história do país.


Reunidos na vila olímpica a 12 mil quilômetros dali, os atletas receberam a novidade com apreensão, mas sem surpresa. O Burundi, afinal, vivia numa guerra civil desde o assassinato do último presidente eleito, em 1993. O conflito mantinha a política instável e ceifava a vida de milhares de pessoas – inclusive mães, pais e irmãos de alguns dos sete integrantes do time, que participavam dos Jogos pela primeira vez.


Uma semana antes de saberem da tormenta em sua terra natal, os atletas haviam desfilado diante de 85 mil pessoas na cerimônia de abertura da Olimpíada. À frente do grupo, carregando a bandeira nacional, estava Dieudonné Kwizera, inscrito no evento como treinador. Era ele o principal responsável pela presença da delegação em Atlanta, naquela noite, ao lado de mais de 10 mil atletas de 197 países.


A guerra no Burundi mantinha a política instável e ceifava a vida de milhares de pessoas – inclusive mães, pais e irmãos de alguns dos sete integrantes do time

Nascido na zona rural do Burundi, Kwizera foi morar ainda adolescente com o tio, um advogado influente na capital, para cursar uma boa escola. Lá, teve descoberto o talento para a corrida. Anos depois, em 1986, foi convidado para terminar o ensino médio nos Estados Unidos e começar a faculdade em seguida.


Com a oportunidade, raríssima para um jovem do Burundi, Kwizera evoluiu e tornou-se um corredor de nível internacional na prova dos 800 metros. Já universitário, aos 21 anos, ele tinha plenas condições de ir aos Jogos de Seul, em 1988. Esbarrou, porém, num detalhe: apesar de ser independente desde 1962, o Burundi não tinha um comitê olímpico nacional constituído. Kwizera chegou a viajar à Coreia do Sul na esperança de competir de forma independente, mas não teve a participação liberada.


Passada a decepção, o atleta se mudou para o Japão, virou profissional e colocou na mira as Olimpíadas seguintes, em 1992. Com a ajuda do tio, o mesmo que o havia hospedado na juventude, Kwizera fundou a agremiação local em 1990. Bastava buscar o Comitê Olímpico Internacional, na Suíça, para reconhecer a nova entidade. O esporte, todavia, era a última das preocupações dos políticos do Burundi. A papelada acabou não andando na velocidade necessária e o comitê não foi reconhecido a tempo dos Jogos de Barcelona. Dessa vez, o africano nem chegou a viajar.


A questão só foi resolvida no ano seguinte, em 1993, quando Kwizera ganhou a ajuda do príncipe Albert, de Mônaco. Atleta do bobsled que representou o riquíssimo principado europeu em cinco Olimpíadas de Inverno, o príncipe Albert era membro do COI desde 1985. Ele jogou sua influência sobre o caso e o comitê nacional do Burundi foi homologado naquele mesmo ano. O país finalmente poderia competir nos Jogos de 1996.


Feliz pelo reconhecimento, Kwizera sabia que chegaria a Atlanta longe dos seus melhores dias. Aos 29 anos, com dores insistentes na coxa, ele só conseguiu atingir o índice B para a prova dos 1500 metros. Nesse sistema de classificação, já obsoleto no atletismo olímpico, um atleta só garantiria vaga nos Jogos se obtivesse o índice A em sua prova de corrida, salto ou arremesso. Tendo apenas o índice B, mais fraco, só poderia competir se nenhum outro atleta de seus país fosse nível A.


O problema é que o Burundi, mesmo destroçado pela guerra, tinha uma geração formidável de corredores, e um deles conseguiu o índice A para os 1500 metros. Era Vénuste Niyongabo, medalhista de bronze na prova no mundial de atletismo de 1995 e candidato ao pódio em Atlanta. Com a presença dele, Kwizera não teria direito a uma vaga. Ao lado do tio, que era o chefe de missão da delegação, ele viajou com as credenciais de treinador.



Vénuste Niyongabo (1102) abriu mão de sua prova mais forte para dar a vaga a seu amigo-treinador. Em troca, ganhou ouro em outra prova (Olympic Channel)

E foi nessa condição que Kwizera, fluente em seis idiomas, passou a falar com a imprensa sobre a caótica situação de sua terra. Assim como na vizinha Ruanda, que vivenciou um massacre de 500 mil pessoas em 1994, a guerra no Burundi era inflamada pelo conflito entre as etnias Tutsi e Hutu, que acumulavam décadas de ataques e represálias entre si.


Era essa a raiz do golpe em andamento por aqueles dias: o exército, comandado pelos Tutsi, afugentou o presidente, um Hutu, depois que uma milícia Hutu invadiu uma vila da etnia rival e matou mais de 300 pessoas, na maioria mulheres e crianças desarmadas. Aos jornalistas, Kwizera se recusava a declarar sua etnia e pregava a união. “Todos os habitantes do Burundi falam a mesma língua, louvam ao mesmo Deus, têm a mesma cultura”, repetia ele em entrevistas.


Enquanto ainda buscava notícias dos pais que viviam no interior, sem carro nem telefone, Kwizera foi procurado por Niyongabo no dia 27 de julho. Depois de alguma reflexão, o melhor corredor da equipe havia resolvido mudar de prova e disputar os 5000 metros, para a qual também tinha índice registrado. Com isso, em tese, abria espaço para que o companheiro corresse os 1500.


Tratava-se de uma dívida de gratidão. Foi Kwizera quem conseguiu, junto ao então presidente do país, um auxílio de 3 mil dólares e uma passagem para a Itália para que Niyongabo pudesse treinar na reta final para os Jogos. Sabendo do antigo desejo do amigo em disputar a Olimpíada, Niyongabo abriu mão de sua melhor chance de vitória.


As provas eliminatórias dos 1500 metros seriam na manhã do dia 29, uma segunda-feira. Foi só na noite de domingo, na véspera, que o COI autorizou Burundi a fazer a troca de atletas. Mesmo assim, ciente de que o seguro morreu de velho, o mais novo inscrito para a corrida se apresentou no estádio tampando com o dedo sobre o “C” em seu crachá, para esconder que estava registrado como coach (treinador) e não como atleta.


Kwizera foi sorteado para correr na quinta e última bateria da primeira fase. Largou bem e começou entre os líderes, mas perdeu força e cruzou a linha em sexto lugar entre 12 concorrentes. Apesar de respeitável, sua marca de 3m41s45 foi insuficiente para garantir uma vaga nas semifinais.


A eliminação não fez muita diferença. Suado e exausto, o atleta do Burundi ajoelhou-se, beijou a pista e agradeceu. Depois de oito anos de luta, era enfim um atleta olímpico.


A vez de Niyongabo chegou cinco dias depois. Depois de passar por duas séries eliminatórias, alinhou-se com os 14 outros finalistas dos 5000 metros e, para surpresa geral, venceu a corrida, deixando um queniano e um marroquino para trás. Em sua conturbada estreia olímpica, Burundi levou para casa uma medalha de ouro.

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