top of page

Um continente desabrocha

Abebe Bikila usou monumento arrancado da Etiópia pelos italianos como ponto de partida para vencer maratona de Roma e inaugurar a era dos heróis africanos

Bikila antes da largada da maratona em Roma (Reprodução / Olympic Channel)

Abebe Bikila tinha três anos quando sua terra natal, a Etiópia, foi invadida por ordem do ditador Benito Mussolini em outubro de 1935. Na ocupação, que forçou a família a fugir para uma vila no interior, as tropas italianas arrancaram do país o Obelisco de Axum, construído no século 4. Símbolo de um império africano inaugurado antes de Cristo, a peça de 160 toneladas foi transportada em pedaços para a Itália e instalada na praça de Porta Capena, perto do Coliseu em Roma. E lá o monumento continuava 25 anos mais tarde, em 1960, quando a cidade recebeu os Jogos Olímpicos.


Depois de várias tentativas frustradas de sediar o evento, Roma preparou uma Olimpíada no capricho. Uma das inovações estava na maratona, que teria começo e fim em pontos históricos da capital – e não dentro do estádio, como era o costume olímpico. A menos de um quilômetro da linha de chegada, no Arco de Constantino, estava o velho obelisco etíope. E foi naquele ponto que Abebe Bikila, um desconhecido atleta de 28 anos, arrancou para ganhar a prova e dar à Etiópia e à África negra a primeira medalha de ouro de sua história.


A descolonização africana teve um impulso decisivo em 1960, quando 17 países ficaram independentes. Até aquele ano, a porção subsaariana do continente só subia ao pódio olímpico com a África do Sul, cuja presença era por si só uma antítese à inclusão negra. O país, mergulhado no apartheid, formava equipes inteiramente brancas. Os Jogos de Roma marcaram a despedida dos sul-africanos, que passariam 32 anos excluídos do evento devido a seu regime segregacionista.


A Etiópia havia estreado em Olimpíadas na edição anterior, em Melbourne-1956, sem resultados relevantes. Nos anos seguintes, porém, frutificou o trabalho do treinador sueco Onni Niskanen, contratado pelo imperador da Etiópia, Haile Selassié, para orientar membros de sua guarda pessoal. Um destes militares era Abebe Bikila. Pastor de gado na adolescência, Bikila havia se alistado à Guarda Imperial em 1951, aos 19 anos, e na corporação teve acesso a vários esportes até se fixar no atletismo.


Pastor de gado na adolescência, Bikila entrou para a Guarda Imperial em 1951, aos 19 anos, e na corporação teve acesso a vários esportes até se fixar no atletismo. Mas só foi a uma maratona um ano antes da Olimpída

Bikila só disputou sua primeira maratona em 1959, mas evoluiu rapidamente sob a condução do treinador escandinavo. A poucas semanas da Olimpíada, registrou o tempo de 2 horas, 21 minutos e 23 segundos. A marca batia o recorde olímpico do lendário corredor tcheco Emil Zátopek (2h23m03s), que vigorava desde 1952, mas foi recebida com ceticismo pelos organizadores em Roma que receberam a inscrição do africano.


Quando se alinhou para a largada ao lado de 68 adversários, na Praça do Campidoglio, Bikila chamou atenção por estar de pés descalços, detalhe cujas imagens entrariam para a história. Não era um sinal de miséria extrema, como os dirigentes etíopes fizeram questão de enfatizar. A verdade é que Bikila havia experimentado tênis novos em Roma, mas o calçado o incomodou e causou bolhas durante os treinos. Preferiu, assim, não trocar o certo pelo duvidoso, já que havia corrido descalço a vida toda e a maratona seria entre a tarde e a noite, o que eliminava o risco de queimar a sola do pé no asfalto romano.



A largada foi às 17h30. Bikila logo chegou ao pelotão da frente e, pouco antes da metade da prova, já se isolava na ponta ao lado de Rhadi Ben Abdesselam, do Marrocos. Ao cair da noite, centenas de soldados italianos postados pelo trajeto iluminaram o caminho com tochas. Depois de mais de 20 quilômetros correndo juntos, sem se falarem nem se olharem, os dois avistaram o Obelisco de Axum. Bikila seguiu o plano à risca, apertou o passo e deixou o marroquino para trás na Via Ápia, a reta final da corrida. Cruzou a linha de chegada em 2h15m16s e parecia descansado, como se não tivesse acabado de bater o recorde mundial.



Roteiro semelhante seria produzido na Olimpíada seguinte, Tóquio-1964. Bikila, desta vez de tênis e meias, estava entre os favoritos, mas sua condição era duvidosa porque ele havia retirado o apêndice cinco semanas antes da corrida. As dúvidas, porém, se dissiparam rapidamente e o etíope aumentou sua vantagem na liderança gradualmente até cruzar a linha de chegada com sobras, mais de quatro minutos à frente do segundo colocado. O tempo, 2h12m11s, seria o recorde olímpico até 1976.



Bikila ainda tentaria uma nova vitória em 1968, na Cidade do México, mas abandonou a corrida aos 17 quilômetros de prova. O motivo foi revelado logo depois: o bicampeão olímpico correu com uma fratura na fíbula. Seu colega de equipe Mamo Wolde, um dos poucos que sabiam da perna quebrada, venceu a prova e deu à Etiópia seu terceiro ouro seguido na maratona.


Em março de 1969, cinco meses após a Olimpíada do México, Bikila dirigia o fusca que ganhou de presente do imperador Selassié. No trajeto noturno, com pista molhada, o maratonista perdeu o controle do carro e capotou em uma vala ao lado da estrada. Na queda, lesionou a coluna cervical. Resgatado horas depois do acidente, acabou transferido a Londres, para receber atenção especializada.


Apesar dos esforços médicos, o etíope ficou paralisado da cintura para baixo pelo resto da vida. Durante os oito meses de tratamento na Inglaterra conheceu esportes para cadeirantes e competiu no tênis de mesa, no arco e flecha e até numa corrida de trenós puxados por cães. A reabilitação de Bikila, porém, nunca foi completa, e o maratonista morreu após uma hemorragia cerebral em 1973. Tinha 41 anos.

Comments


bottom of page