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Piscina tingida de sangue

Atletas da Hungria deixaram para trás um país prestes a ser invadido. Na Olimpíada, encontraram o time dos invasores


Quando Hungria e URSS se enfrentaram no pólo aquático em Melbourne, a torcida ficou claramente ao lado dos húngaros. Mas ninguém esperava a pancadaria na piscina que se seguiu (Arte: Henrique Neves)

Era noite em Budapeste. Nos arredores da cidade, reunidos numa casa nas montanhas, dezenas de atletas húngaros contavam os dias para embarcarem rumo a Melbourne, na Austrália. Faltava menos de um mês para os Jogos Olímpicos de 1956. Mas algo parecia errado naquele 23 de outubro. Do alto de seu isolado centro de treinamento, o time olímpico viu o centro da capital tomado por colunas de fumaça, muito barulho e uma aglomeração de 200 mil pessoas. Nascia ali uma tentativa de derrubar o governo controlado pela União Soviética, que dominava o país desde a Segunda Guerra Mundial.


O levante havia começado à tarde. Milhares de manifestantes, a maioria estudantes, pediam mais liberdades individuais e um estado independente de qualquer potência estrangeira. Em frente à estátua de um antigo herói nacional, cantavam hinos patrióticos enquanto arrancavam, de todas as bandeiras húngaras que tinham à mão, o emblema com a foice e o martelo que decorava o pavilhão desde 1949.


Alinhada com a Alemanha nazista durante a Segunda Guerra e responsável pela morte de 600 mil judeus, a Hungria capitulou em fevereiro de 1945 e logo caiu sob o domínio da URSS. Em poucos anos, instalou-se um governo centralizado e militarizado que tentava coletivizar a indústria e a agricultura. Milhares de opositores foram perseguidos e levados a campos de trabalho forçado fora do país.


Com a morte de Josef Stálin, em 1953, a Hungria viu brotar um movimento de emancipação. O novo primeiro-ministro, Imre Nagy, era um comunista de primeira hora que se distanciou do modelo stalinista e passou a buscar abertura política e econômica. Não durou nem dois anos no cargo, porém, até ser escanteado pela cúpula do partido, que voltou a endurecer o regime. Foi a revolta crescente contra o recuo democrático que levou os jovens às ruas em outubro de 1956.


Da praça onde estavam reunidos, os manifestantes cruzaram a ponte sobre o rio Danúbio e se juntaram em frente ao parlamento, onde a multidão engrossou. Os rebeldes derrubaram uma estátua de Stálin, de 9 metros de altura, e tentaram fazer um anúncio na rádio. Nesse momento, porém, agentes do governo abriram fogo contra o público e espalharam o caos: viaturas foram incendiadas, armas roubadas dos quartéis e mais símbolos do poder comunista apareceram depredados pela cidade.


Nos dias seguintes, centenas de vidas foram ceifadas na luta armada contra soldados soviéticos e agentes da polícia política húngara. No calor dos tiroteios, a maioria dos atletas foi ao encontro de suas famílias sem saber se o sonho olímpico ainda estava de pé. Mas chegou o final de outubro e o impensável aconteceu: a Hungria se impôs, o reformista Imre Nagy foi reconduzido ao poder e as tropas invasoras começaram a deixar Budapeste.


“Muitos atletas tinham se envolvido na luta e, assim que iam chegando ao hotel, vários sem suas bagagens, começaram a contar como tinham manejado metralhadoras e levantado barricadas, enfrentado a polícia e as tropas soviéticas e ajudado a carregar os feridos”, disse um atleta húngaro à Sports Illustrated

Baixada a poeira, os dirigentes esportivos da Hungria trataram de reagrupar a delegação num hotel da capital. Com os transportes e os telefones fora de serviço, foi preciso dois dias para levar todos ao ponto de encontro. Treinadores faziam convocações pelo rádio e esquadrinhavam a cidade, de carro ou a pé, em busca de seus pupilos.


“Muitos atletas tinham se envolvido na luta e, assim que iam chegando ao hotel, vários sem suas bagagens, começaram a contar como tinham manejado metralhadoras e levantado barricadas, enfrentado a polícia e as tropas soviéticas e ajudado a carregar os feridos”, contou um membro da equipe à revista Sports Illustrated semanas depois.


Na virada para novembro, enquanto os revolucionários desfilavam vitoriosos pelas ruas de Budapeste, a maior parte do time olímpico atravessou a fronteira em direção à Tchecoslováquia, de onde começaria a jornada entre aeroportos até a Austrália. Trancados num colégio interno no país vizinho, souberam pelo rádio que os ventos estavam virando. Centenas de tanques soviéticos rolaram para dentro da Hungria e cercaram Budapeste na madrugada de 4 de novembro. Alguns atletas quiseram voltar e lutar, mas as fronteiras já estavam fechadas.


Foi só quando chegou a Melbourne, no dia 20, que o grupo descobriu a tragédia em toda sua extensão. Abandonada à própria sorte pelas potências ocidentais, a resistência húngara caiu deixando um saldo de mais de 2 mil mortos. Outras 200 mil pessoas fugiram do país.


Revolucionários húngaros desfilam vitoriosos no final de outubro: dias depois, levante foi esmagado pela URSS (Fortepan / Pesti Srác2)

Abaixo da cintura

Delegação húngara desfila na abertura das Olimpíadas de Melbourne: naquele momento, ninguém sabia se voltaria para casa depois dos Jogos (Relatório oficial dos Jogos de Melbourne-56)

O ataque soviético teve impacto instantâneo nas Olimpíadas. A Holanda, a Suíça e até a Espanha, que vivia ela própria uma ditadura, anunciaram um boicote aos Jogos. Outro conflito em andamento, a Guerra do Suez, também provocou baixas. Derrotado por Israel e invadido por França e Reino Unido no final de outubro, o Egito resolveu não competir e foi seguido por Camboja, Iraque e Líbano.


Os húngaros, todavia, estavam lá. Ao chegarem à Vila Olímpica, arrancaram do mastro a bandeira da Hungria comunista e hastearam o estandarte com um buraco no meio, símbolo da revolução natimorta. Para um grupo de jovens que não sabia sequer se voltaria a ver a família, a ansiedade da disputa pelas medalhas era um pálido detalhe. O que fazer ao final dos Jogos? Voltar para casa ou recomeçar a vida em outro lugar?


Para um país com o tamanho do estado de Santa Catarina e menos de 10 milhões de habitantes, a Hungria é um fenômeno esportivo. Nas Olimpíadas de 1952, em Helsinque, o país levou 42 medalhas, 16 delas de ouro, e só ficou atrás de americanos e soviéticos no quadro geral. A equipe tinha duas estrelas internacionais: o boxeador László Papp, que buscava o tricampeonato olímpico, e Ágnes Keleti, ícone mundial da ginástica artística.


Judia e sobrevivente do holocausto nazista, Keleti chegou a Melbourne com 35 anos. É quase o dobro da idade de ouro das grandes ginastas da história. Sua principal rival, a ucraniana Larisa Latynina, venceu a competição individual geral, mas Keleti foi campeã nas provas de solo, barras assimétricas e trave de equilíbrio, sempre derrotando uma ou mais soviéticas. No solo, ela e Latynina dividiram o primeiro lugar. Lado a lado no pódio, viram subir as respectivas bandeiras, ouviram os hinos nacionais e se abraçaram, sem qualquer manifestação fora do figurino.


Outros esportes tiveram encontros menos amistosos entre os dois países. Na esgrima, o locutor do sabre masculino ficou afônico tentando acalmar o público no duelo entre o húngaro Rudolf Kárpáti e o russo Lev Kuznetsov. As 800 pessoas aboletadas no ginásio acanhado iam ao delírio nos pontos de Kárpáti e vaiavam as estocadas do oponente com igual entusiasmo, o que obrigava o árbitro a interromper o jogo a cada passo. No fim, ouro para Kárpáti, o sétimo título olímpico seguido dos húngaros na prova.


A Hungria sequer tem saída para o mar, mas ostenta uma larga tradição em esportes aquáticos. As piscinas são um elemento da cultura do país, que é reconhecido por seus seus nadadores desde o surgimento das Olimpíadas. O time de pólo aquático masculino venceu os Jogos pela primeira vez em 1932, em Los Angeles, e tinha conquistado três dos últimos quatro ouros em disputa até 1956. Eram os favoritos à vitória em Melbourne.


A intervenção do Exército Vermelho, porém, atrapalhou os treinos da equipe. Quando finalmente se instalaram na Austrália, os húngaros não punham os pés numa piscina havia quase um mês. Mesmo assim, o torneio começou em ritmo de treino: a equipe fez 6 a 1 na Grã Bretanha, 6 a 2 nos EUA e passou para o hexagonal final. Com vitórias sobre Itália e Alemanha, ambas por 4 a 0, a Hungria já tinha garantido pelo menos o bronze quando encarou os soviéticos na tarde de 6 de dezembro.


Com capacidade para 6 mil pessoas, a arena da natação em Melbourne estava lotada. A Austrália abrigava uma crescente comunidade húngara desde o fim da segunda guerra, e centenas estavam lá dispostos a criar um inferno para os soviéticos. “Logo antes do jogo, eu só ouvia um grande rugido das arquibancadas”, contou o russo Viktor Ageyev para o documentário Freedom’s Fury (2006), produzido por Quentin Tarantino, que relembrou a história da partida 50 anos depois. “Havia uma aura de pressão pairando sobre a água”.


O pólo aquático é um esporte desgastante e, não raro, violento. Sem poder tocar as bordas ou o fundo da piscina, os jogadores nadam até três quilômetros por partida e buscam o gol adversário por mais de meia hora. Paramentados com uma touca que cobre as orelhas, os atletas ficam relativamente protegidos das agressões visíveis de fora da piscina, mas golpes debaixo d’água podem passar despercebidos pela arbitragem.


Ao chegarem à Vila Olímpica, arrancaram do mastro a bandeira da Hungria comunista e hastearam o estandarte com um buraco no meio, símbolo da revolução natimorta

As duas seleções já eram íntimas quando mediram forças na Austrália. Na verdade, os soviéticos passaram a primeira metade dos anos 50 treinando na Hungria e aprendendo com os mestres. Tecnicamente superiores, os húngaros traçaram a estratégia de evitar o confronto físico, irritando e cansando os oponentes o máximo possível.


Funcionou em parte: os russos logo perderam as estribeiras e começaram a distribuir bordoadas, mas a Hungria entrou na dança poucos minutos depois. Cada vez mais escancaradas, as agressões se empilhavam à medida em que os húngaros, aos trancos e barrancos, abriam 4 a 0 no placar. Em dado momento, os jogadores simplesmente esqueceram a bola num canto e promoveram uma pequena sessão de pancadaria.

A dois minutos do fim, o húngaro Ervin Zádor ouviu um apito e olhou para o juiz à beira da piscina. Quando voltou a virar a cabeça, só teve tempo de ver emergir das águas, enorme e de braço esticado, o russo Valentin Prokopov. O soco abriu um corte embaixo do olho direito, o sangue jorrou em profusão e deixou um rastro na água.


Filme Children of Glory (2006) conta história do jogo sangrento entre Hungria e URSS


Zádor saiu da piscina para ser atendido e todos puderam ver a cascata vermelha que lhe descia pelo rosto. Foi a senha para que o ginásio viesse abaixo: a torcida, ensandecida, gritava impropérios contra os soviéticos e os mais exaltados invadiram a área da piscina, para justiçá-los pessoalmente. Embora o árbitro apitasse desesperado na esperança de restabelecer a ordem, era inútil. Ninguém podia ouvi-lo. Sem opção, deu a partida por encerrada.


Declarados vencedores, os húngaros logo se recolheram, mas os soviéticos precisaram de proteção. Migraram para a beira da piscina até que os policiais, depois de buscarem reforços, formassem um cordão para blindá-los no caminho até o vestiário. O time bateu em retirada debaixo de vaias, cusparadas e objetos arremessados das arquibancadas. Até que os jogadores voltassem em segurança à Vila Olímpica, a escolta não arredou pé.


Mas o estrago estava feito. A foto de Zádor ensanguentado como um mártir estampou capas de jornais e correu o mundo, sujando ainda mais a imagem dos soviéticos no ocidente. A competição em si continuou sem mais consequências e a Hungria estava de volta à piscina já no dia seguinte para disputar o título com a Iugoslávia. Venceram, por 2 a 1, e levaram o ouro olímpico outra vez. Os russos ficaram com o bronze.


A foto do húngaro Ervin Zádor ensanguentado, deixando a piscina após levar um soco de um russo, estampou capas de jornais e correu o mundo (AP)

A diáspora


Os húngaros chegaram à Austrália com 109 atletas, dos quais 89 homens e 20 mulheres. Alguns já tinham resolvido seu futuro antes mesmo de competirem. “Eu me levantei, tomei nas mãos um copo de vinho e falei: é isso. Eu não vou voltar”, contou Zádor, a vítima do soco emblemático, ao filme Freedom’s Fury.


Terminados os Jogos, cerca de metade da delegação embarcou de volta para casa e o restante pediu asilo político. Dos onze membros do time campeão de pólo aquático, oito escolheram a Hungria e estavam novamente defendendo o país nas Olimpíadas de 1960, em Roma. Para atletas de renome, ficar na Hungria era uma opção aceitável. O boxeador László Papp, por exemplo, conseguiu até um aval do governo para lutar profissionalmente. Foi a primeira autorização desse tipo concedida por um país a leste da cortina de ferro.


A ginasta Agnes Keleti, que encerrou sua carreira em Melbourne, escolheu emigrar para Israel, de onde passou a ajudar no sustento da mãe e da irmã que ficaram na Hungria. O pai não estava presente: mais de uma década antes, perdera a vida nas câmaras de gás do campo de concentração de Auschwitz.


Vários húngaros se estabeleceram na própria Austrália, mas o destino preferido do grupo foi os Estados Unidos. Foi o caso de Zádor, que mudou-se para a Califórnia e virou técnico de natação. No começo dos anos 60, chegou a treinar um irrequieto garoto de onze anos chamado Mark Spitz, que faria história nas Olimpíadas de Munique, em 1972, ao sair da piscina com sete medalhas de ouro penduradas no pescoço.


Time húngaro com suas medalhas de ouro: parte dos jogadores retornou ao país dominado pelos soviéticos, mas outros nunca mais voltaram (Relatório oficial dos Jogos de Melbourne-56)

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