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Pela porta dos fundos

Reconduzido ao programa olímpico em Rio-2016, rugby era parte dos Jogos nas primeiras edições. Até ser palco de uma partida repleta de cenas lamentáveis


Franceses (de uniforme escuro) esperavam derrotar os EUA facilmente diante de 40 mil compatriotas, mas tomaram uma lavada (Arquivo COI)

Os policiais responsáveis pela segurança do jogo entre França e Estados Unidos, que valia o ouro do rugby nas Olimpíadas de 1924, entraram em ação ainda antes do apito final. Os americanos tinham desmoralizado o time da casa com um acachapante 17 a 3 diante de milhares de torcedores empoleirados no Estádio de Colombes, em Paris, mas não houve tempo para festa: dali mesmo, do campo, vencedores e vencidos testemunharam o primeiro grande caso de hooliganismo em Jogos Olímpicos.


Já antevendo um tumulto, os organizadores haviam instalado um arame ao redor do gramado para conter o público. O cuidado ajudou a impedir invasões, mas os franceses brindaram os visitantes com pedras, garrafas e até uma bengala que decolou das arquibancadas e acertou em cheio a cabeça de um americano, que caiu desacordado. Torcedores foram espancados e precisaram rolar para dentro do campo, onde foram colhidos por ambulâncias.


“Eu achei que eles estivessem mortos”, lembrou Norman Cleaveland, um dos jogadores dos EUA. “Tínhamos certeza que era questão de tempo até botarem as mãos na gente”. Não botaram graças aos gendarmes que escoltaram a equipe para os vestiários, mas o episódio foi traumático. A imprensa francesa condenou a selvageria dos compatriotas, que também vaiaram o hino americano a ponto de abafar o som da fanfarra na cerimônia de premiação. Envergonhados, os dirigentes pediram desculpas formais num banquete oferecido aos atletas no Palais Royal, ao lado do Museu do Louvre.


Foi o último ato do rugby olímpico por quase um século. A modalidade, que voltou aos Jogos em sua versão compacta – com times de sete jogadores em vez de quinze – na edição do Rio, em 2016, foi testada com insistência nos primeiros Jogos do século XX, mas não vingou. Nas quatro ocasiões em que houve rugby até 1924, nenhuma teve mais de três times inscritos.


Boa parte do esvaziamento pode ser creditado ao desprezo da Grã-Bretanha, berço do esporte e de seu gêmeo bivitelino, o futebol. Mesmo a poucas centenas de quilômetros de Paris, os britânicos não se interessaram por um torneio que os obrigaria a competir como Reino Unido, com um time único, num esporte marcado desde o nascimento por rivalidades locais entre Inglaterra, Escócia e País de Gales. Outras potências do rugby, como África do Sul, Austrália e Nova Zelândia, ficaram em casa por não poderem arcar com a longa travessia até Paris.


Coube então aos Estados Unidos aceitar um convite dos franceses em setembro de 1923. O problema é que o rugby, engolido pela crescente popularidade do futebol americano no país, praticamente inexistia e se limitava a uns poucos times na Califórnia. Foram os jogadores destas equipes, principalmente, que atenderam a um chamado para participar de testes e treinar para os Jogos dali a menos de um ano.


A preparação dos EUA é uma mostra de como o país já levava o esporte a sério àquela época. Sem dinheiro para bancar a viagem dos 22 jogadores, os dirigentes organizaram um banquete em San Francisco, onde o elenco treinou todos os domingos por mais de quatro meses, e passaram o chapéu entre os presentes. Levaram menos de 20 minutos para amealhar 25 mil dólares (equivalente atual a 380 mil dólares) com os ricos da cidade. Para ir à Europa, a equipe gastou uma semana na estrada até Nova York e mais nove dias para atravessar o Atlântico.


Sem dinheiro para bancar a viagem dos 22 jogadores à França, o time organizou um banquete em San Francisco e levantou 25 mil dólares com os ricos da cidade (Reprodução)

Antes de chegar à França o grupo passou uns dias na Inglaterra, enfrentando times locais para ganhar ritmo de jogo. Num desses encontros, um atleta americano partiu o nariz em dois lugares e um adversário saiu com a perna quebrada. Embora possa chocar os não iniciados, a ocorrência é corriqueira no rugby, que mesmo atualmente registra vítimas fatais ocasionalmente. O caso foi citado de forma quase displicente no relatório de viagem do chefe da delegação, muito mais preocupado em exaltar a hospitalidade dos ingleses durante a estadia.


Os elogios à acolhida dos britânicos viraram pó quando o grupo cruzou o Canal da Mancha. Na França, os atritos começaram assim que as autoridades na costa impediram o desembarque dos americanos por problemas na documentação. O imbróglio só foi resolvido após horas de altercações, quando alguns atletas já mandavam a burocracia às favas e pisavam em solo francês por conta própria.


Era comum naquelas primeiras Olimpíadas que alguns esportes coletivos fossem disputados antes da programação oficial. A cerimônia de abertura de Paris foi no dia 5 de julho de 1924, mas em 4 de maio a França já abria o torneio de rugby contra a Romênia, equipe que completava o triangular. O papel dos romenos foi decorativo: tomaram um 61 a 3 dos anfitriões e um 37 a 0 dos americanos no domingo seguinte.


O duelo contra a equipe do leste europeu deu um aperitivo da hostilidade local aos americanos, vaiados do começo ao fim da partida por seis mil obstinados. Nada comprado, claro, ao que esperava os visitantes na grande decisão, uma semana mais tarde. Mais de 40 mil parisienses, dos quais 20 mil pagantes nos assentos, enfrentaram uma tarde abafada e sufocante para ver o time da casa confirmar o favoritismo e bater os americanos. As apostas no entorno do estádio davam vantagem de 20 a 1 para a França.


A confiança dos mandantes começou a ruir nos primeiros minutos. O ala esquerda Adolphe Jaréguy, que ostentava o rótulo de jogador mais rápido do mundo, levou dois vigorosos tackles quando armava jogadas de ataque. No terceiro, sucumbiu sob os 95 kg de um adversário e deixou o campo sangrando, “carregado como um saco de batatas”, segundo a descrição de um colega. O primeiro tempo terminou só 3 a 0 para os americanos, mas a França já estava arrasada de corpo e alma com a superioridade física e o moral alto dos oponentes. No segundo tempo, debaixo de chuva, os Estados Unidos passearam e fecharam a conta em 17 a 3.


Já maculado com as cenas lamentáveis da partida, o status do rugby olímpico sofreu seu primeiro abalo naquele mesmo ano. No congresso que organizaram em Paris para tratar das edições seguintes dos Jogos, os cartolas colocaram o esporte num grupo de modalidades opcionais, que poderiam ou não ser incluídas pelos organizadores das edições seguintes. Um ano depois, o rugby perdeu seu maior padrinho: o Barão Pierre de Coubertin, idealizador dos Jogos, que tinha sido jogador e árbitro na juventude. Coubertin deixou a presidência do Comitê Olímpico Internacional em 1925 e o rugby já não apareceu nas Olimpíadas de 1928, em Amsterdã.




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