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Os Jogos da sobriedade

Álcool estava banido dos EUA em plena Olimpíada, mas atletas europeus não tinham nada com isso


Mesmo com a grana curta, organizadores de Los Angeles-32 tentaram fazer os convidados se sentirem em casa. Mas não deu para liberar o vinho e a cerveja (Reprodução / The New York Times)

Faltavam nove meses para as Olimpíadas de 1932, em Los Angeles, quando atletas da França avisaram: só cruzariam o Atlântico para competir se fossem autorizados a entrar com vinho em território americano. A bebida, alicerce da dieta francesa há séculos, era proibida nos Estados Unidos. Como também eram o uísque britânico, a vodca russa e até a cervejinha dos alemães. Desde 1920 era ilegal produzir, vender e transportar bebidas alcoólicas no país.


Embora a medida seja conhecida como Lei Seca, esse nome esconde sua real seriedade: o que vigorava nos Estados Unidos não era uma simples legislação, e sim uma emenda à constituição do país, cujo texto é tratado com deferência quase religiosa.


O banimento do álcool havia coroado mais de cem anos de luta de um amplo movimento proibicionista. O grupo reunia desde correntes protestantes até associações de emancipação feminina, que viam a bebida pela faceta típica de sua época: um produto de consumo exclusivamente masculino, capaz de transformar frequentadores dos saloons em homens violentos e disfuncionais, arruinando famílias no processo.

A proibição significou uma queda no consumo de álcool no país, graças à parcela da população que abraçou a abstinência. Mas a demanda, nunca suprimida, fez florescer Al Capone e outros contrabandistas de bebidas, que irrigaram bares ilegais em cidades grandes e pequenas à custa de muita corrupção policial.

Cada vez menos popular, a proibição sofreu um duro golpe com a crise de 1929. Jogados à miséria, os trabalhadores não viam mais sentido numa regra que parecia inaplicável e sufocava um setor pujante da economia. Antes de cair na clandestinidade, a indústria de bebidas gerava milhares de empregos e estava entre as maiores fontes de arrecadação do governo federal.


Ainda assim, era a Lei Seca que valia no papel quando atletas e treinadores se preparavam para as Olimpíadas de 1932. A depressão econômica e a distância entre Los Angeles e a Europa já prometiam uma queda natural no número de participantes estrangeiros, e a última coisa que os americanos queriam era um boicote de competidores que não podiam passar sem seu vinhozinho.


A mesma norma que obrigava os franceses a pedir uma brecha na lei americana já havia azedado a relação entre os países oito anos antes, no sentido inverso. Em 1924, nos Jogos de Paris, os EUA pediram aos anfitriões que fechassem todos os bares e lojas de bebida nos arredores da vila olímpica, mas não foram atendidos. Com isso, os atletas americanos foram proibidos de passear pelas redondezas em busca de restaurantes ou outras alternativas à comida do alojamento, que não era das melhores.


A emenda constitucional que acabou com a Lei Seca, em 1933, foi a primeira da história dos EUA feita unicamente para anular uma emenda anterior: a que havia banido o álcool 13 anos antes (Wisconsin Historical Images)

Até onde mostram os registros da época, as negociações para a entrada dos vinhos em solo americano fracassaram, e o máximo que se permitiu oficialmente aos franceses foi uma espécie de xarope de açúcar. Os jornais locais, todavia, já estavam acostumados com a leniência na aplicação da Lei Seca e duvidavam da rigidez da fiscalização. É o que sugere uma matéria do The New York Times, de junho de 1932, que louvava o esforço dos organizadores em atender às necessidades específicas dos visitantes no cardápio da vila olímpica.


“Pode haver dificuldades legais, também, sobre a cerveja de treinamento dos britânicos, a cerveja dos atletas teutônicos e a essencial ração de vinho dos latinos”, avaliava a reportagem. “Parece, no entanto, haver uma esperança tácita de que a isenção de exames alfandegários concedida aos convidados para seu 'equipamento atlético' possa incluir alguns privilégios quase diplomáticos”.

A relação entre álcool e esporte mudou drasticamente nos últimos cem anos. Se hoje as bebidas são um item recreativo que alguns atletas evitam ao máximo – outros nem tanto –, no início do século XX ainda havia muita ignorância e experimentação. Era comum, por exemplo, que maratonistas esgotados recebessem de seus treinadores uma dose de uísque ou algo do gênero, nos quilômetros finais, na esperança de reanimar os espíritos para completar a corrida. A cerveja e o vinho, ricos em açúcares, eram vistos antes como alimentos do que algo nocivo à saúde.


Cada vez menos popular, a proibição sofreu um duro golpe com a crise de 1929. Jogados à miséria, os trabalhadores não viam mais sentido numa regra que parecia inaplicável e sufocava um setor pujante da economia.

As histórias de aparição de bebidas nas Olimpíadas de 1932 misturam realidade e folclore. Um dos casos envolve o irlandês Pat O’Callaghan, campeão do lançamento do martelo nos Jogos de 1928, em Amsterdã. Segundo um de seus netos, O’Callaghan chegou aos Estados Unidos com uma grande mala que fazia “clink, clink, clink”. Era o som de seus martelos – bolas de ferro de 7,26 kg cada uma – se chocando contra garrafas de Poteen, um destilado que pode chegar a insanos 90% de teor alcoólico e que é ilegal até na própria Irlanda.


Conta esse neto que O’Callaghan foi revistado na alfândega e questionado sobre as garrafas. “São remédios”, respondeu. “Eu sou o médico da equipe”. Turbinado ou não pelo poderoso tônico de sua terra natal, o irlandês venceu a prova e virou bicampeão olímpico.

Em outra prova do atletismo, o lançamento do disco, diz a lenda que os representantes franceses saíam o tempo todo da área de competição e faziam visitas suspeitas ao túnel que levava aos vestiários do estádio. Lá, descobriu-se, “bebiam generosas doses de champanhe com seus compatriotas”.


Um destes bebedores, Jules Nöel, foi vítima de uma injustiça inusitada. Em sua quarta tentativa na final, atirou o disco a uma distância que parecia ter ido além da marca do americano John Anderson, que vinha em primeiro lugar. Ou seja, era lançamento para medalha de ouro. Naquele exato momento, porém, os árbitros se distraíram com a prova do salto com vara, que ocorria ao lado, e ninguém viu precisamente onde caiu o disco do francês. Nöel ganhou mais uma chance, mas não conseguiu repetir o desempenho e acabou em quarto lugar, a mais cruel das classificações numa Olimpíada.

Quanto à Lei Seca, bastou pouco mais de um ano para que fosse enterrada. Os estados e municípios americanos mantiveram autonomia para impor restrições, e alguns impuseram por décadas. A constituição, porém, foi novamente reformada para acabar com a proibição. A 21ª emenda constitucional, que revogou a 18ª, é até hoje a única na história dos EUA feita unicamente para anular os efeitos de uma anterior.

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