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O tesouro sob a tormenta

Velejador canadense vinha em segundo lugar em regata nos Jogos de Seul, em 1988, quando viu um barco tombado no mar revolto


Barco com dupla de Cingapura virou em meio ao mar revolto e exigiu um salvamento inesperado (Reprodução)

A poucos dias do início das Olimpíadas de 1988, em Seul, o velejador canadense Lawrence Lemieux tentava urgentemente engordar. Acordava cedo, caminhava até o refeitório da vila olímpica e comia uma sobremesa atrás da outra. Em questão de dias, precisava adaptar seu corpo magro para velejar num cenário bem diverso do que imaginara.


Lemieux e os mais de 400 atletas inscritos para o iatismo levaram um susto ao chegarem com seus barcos e equipamentos à cidade de Busan, a mais de 300 quilômetros da capital sul-coreana. Muitos tinham participado de um evento-teste para os Jogos, em 1987, e se deparado com águas muito calmas na baía de Suyong, que sediaria as regatas. Era difícil até navegar contra a corrente marítima, porque o vento estava mais fraco do que ela.


Um ano depois, o tempo virou. Antes dóceis, os ventos chegavam a ultrapassar 30 nós, ou cerca de 50 quilômetros por hora. Essa velocidade, bem acima do normal para as competições, atinge 7 graus na escala Beaufort, uma classificação que vai de 0 (vento nulo) a 12 (furacão). Sob tais condições, o mar ao sul da península coreana forma ondas íngremes que atrapalham a visibilidade e ameaçam a segurança dos velejadores.


Atletas corpulentos levam vantagem nessa situação porque os barcos pesados ganham mais estabilidade e velocidade do que os leves. Lemieux tinha as medidas nada desprezíveis de 1,80m de altura e 85kg, mas competia na classe Finn, frequentada por grandalhões com mais de 1,90m e cem quilos.


O velejador britânico Ben Ainslie veio aos olhos do público brasileiro ao derrotar Robert Scheidt na última regata da classe Laser nos Jogos de Sydney, em 2000. Mas foi na categoria Finn que ele subiu ao panteão dos maiores velejadores da história, levando mais três ouros olímpicos. Para fazer a transição entre as classes e adaptar-se ao novo barco, ele foi obrigado a ganhar peso. Em poucos dias, Lemieux precisou fazer uma compensação parecida.


Apesar das regatas nos Jogos de 1988 terem começado com relativa tranquilidade, o mar foi encrespando com o avançar da competição. O dia 25 de setembro foi especialmente turbulento. No windsurfe, as ondas castigaram impiedosamente os levíssimos barcos da categoria e só 19 dos 45 inscritos completaram a regata.


Em geral, os treinadores dos atletas não tinham permissão para ficar no local de prova com seus barcos. Naquele dia, porém, eles foram liberados para patrulhar a água e prestar socorro a atletas vítimas do mau tempo, já que os organizadores coreanos tinham apenas alguns frágeis botes infláveis para esse fim.


Lemieux ainda estava na briga por medalhas após quatro das sete corridas quando alinhou-se para a quinta regata, naquele mesmo dia. O canadense começou bem, pulou logo para o grupo da frente e vinha em segundo lugar quando avistou, à distância, um barco virado com o casco para cima. Não era um de seus 32 oponentes, e sim uma embarcação da classe 470, que competia naquele mesmo horário num percurso paralelo.



A classe 470 é disputada em duplas, mas Lemieux via apenas um vulto, o velejador Joseph Chan, agarrado ao barco tombado da equipe de Cingapura e lutando para não se afogar. O canadense vasculhou o mar à sua volta e, depois de um minuto, viu o outro tripulante, Shaw Her Siew, se debatendo na água. Não havia opção senão resgatá-lo.


“Eu percebi que seria impossível para ele nadar de volta ao barco, que se afastava cada vez mais. Ele iria se perder no mar. Se eu não conseguia nem ver as bóias de dois metros de altura que colocaram pelo percurso, ninguém conseguiria ver uma pequena cabeça boiando na água”, contou Lemieux numa entrevista, anos mais tarde.


Rapidamente o canadense recolheu para o próprio barco os dois colegas, exaustos e machucados, até que seu próprio treinador apareceu na cena, intrigado com o sumiço repentino do pupilo. Lemieux deixou a dupla de Cingapura aos cuidados do técnico e voltou para a corrida, mas era tarde demais. Do segundo lugar que ocupava antes do socorro, despencou e cruzou a linha de chegada em vigésimo terceiro.


Logo que souberam da história, os organizadores decidiram dar ao canadense a pontuação equivalente à segunda colocação. Não foi o suficiente para uma medalha, e ele acabou em 11º lugar na classificação geral. Com seu gesto, porém, ficou mais conhecido do que os vencedores.

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