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O rugido da tigresa

Quis o destino que o estado da Geórgia, mergulhado na segregação racial, desse ao mundo a primeira campeã olímpica negra da história


Alice Coachman e Jesse Owens, lenda do atletismo, foram os primeiros afro americanos a fazerem publicidade para a Coca-Cola, no início dos anos 1950 (Reprodução)

“Uma recepção triunfal está sendo planejada para a única vencedora da equipe feminina de atletismo dos Estados Unidos”, anunciou o jornal Alabama Tribune no dia 20 de agosto de 1948. “A celebração, por si só, será um marco nas relações raciais para esta cidade no sul da Geórgia”, continuava o periódico. “Pela primeira vez na história, cidadãos – a cidade inteira - prestarão homenagens a um negro”.


A homenageada em questão era a atleta Alice Coachman Davis, de 24 anos. No dia em que a notícia foi publicada, ela estava no porto de Southampton, no sul da Inglaterra, com a maioria dos 300 membros da delegação que havia competido nos Jogos Olímpicos de Londres. Quando subiu a bordo do SS Washington, navio que levaria o time de volta para casa, Alice carregava consigo a medalha de ouro do salto em altura. Era a primeira mulher negra a ser campeã olímpica na história.


A festa antecipada pela imprensa foi mesmo triunfal. Depois de desembarcar em Nova York, conhecer o presidente Harry Truman e ser paparicada na Casa Branca com os colegas de equipe, Coachman chegou a Atlanta, capital da Geórgia. De lá, cobriu por terra os quase 300 quilômetros até Albany, sua terra natal, acompanhada de uma carreata com 200 veículos. Passou por sete cidadelas ao longo do caminho e foi saudada por populares à beira da estrada.


A prefeitura de Albany marcou a cerimônia para o dia 1º de setembro, que ficou conhecido como “Alice Coachman Day”. Depois de desfilar em carro aberto pelas ruas da cidade de 30 mil habitantes, a atleta foi levada a um auditório para o evento em sua honra. A casa estava cheia e muita gente ficou para fora. No palco, ao lado da mãe, Coachman mirou a plateia e reparou que todos os negros no recinto estavam confinados no mesmo lado, separados dos brancos. Na saída, os políticos foram embora sem apertar a mão dela, que se viu obrigada a deixar o salão por uma porta lateral. Assim era a vida no sul dos Estados Unidos.


Depois de desfilar em carro aberto pelas ruas de Albany, Alice foi levada ao auditório para um evento em sua honra. Na saída, os políticos locais foram embora sem cumprimentá-la e ela teve que sair por uma porta lateral (Reprodução / Alabama Tribune)

Coachman foi criada num estado de histórico escravocrata, onde uma série de políticas de segregação tinha força de lei em 1948. A atleta cresceu num mundo em que afro-americanos eram proibidos de frequentar os mesmos parques que os brancos, não podiam usar o mesmo transporte público e nem matricular os filhos nas mesmas escolas. Boa parte destas restrições só cairia mais de quinze anos depois, graças à pressão de um pastor batista nascido ali mesmo, na Geórgia. Quando Coachman foi campeã olímpica, Martin Luther King era um jovem recém-formado em Atlanta.


Quinta de dez filhos de um pedreiro e de uma empregada doméstica, Alice Coachman nasceu em 9 de novembro de 1923. Adorava correr descalça desde pequena, mas sonhava em fazer carreira na dança ou na música, uma paixão que conservou na vida adulta. Num show de talentos durante a viagem a Londres, para as Olimpíadas de 1948, divertiu os companheiros de navio cantando o “Saint Louis Blues”, um clássico eternizado na voz de Louis Armstrong.


Acostumada a vencer meninas e meninos da vizinhança em corridas e outros jogos, a pequena Alice teve o talento para o atletismo descoberto pela professora da quinta série. Quando começou a se destacar em competições, ainda adolescente, não teve muito apoio de casa: o pai achava que ela devia continuar apenas estudando e colhendo algodão para ajudar na renda da família, porque esporte não era coisa de mulher.


A opinião dele não era isolada. Mesmo no final da metade do século, ainda era corrente a ideia de que a maioria dos esportes, inclusive o atletismo, era masculinizante e podia fazer mal à saúde das mulheres. O próprio fundador das Olimpíadas, o Barão de Coubertin, era radicalmente contra o esporte feminino, e foi contra a sua vontade que elas lentamente ganharam espaço nos Jogos a cada quatro anos.


As primeiras grandes campeãs do atletismo americano surgiram na década de 1930. Eram mulheres de origem europeia, grandes e fortes, cujas vitórias costumavam vir acompanhadas de comentários pejorativos nos jornais. Eram “masculinas” demais, na opinião da imprensa esportiva. Um repórter da ANP, uma antiga agência de notícias mantida por jornalistas negros, descreveu Coachman como “bem-cuidada e educada” em comparação às atletas europeias, que seriam mal vestidas, de voz grossa e cabelo curto.


Ironicamente, a Olimpíada de 1948 satisfez o gosto dos que desejavam ver campeãs moldadas ao estereótipo feminino. A estrela daqueles Jogos foi a corredora holandesa Fanny Blankers-Koen, casada e mãe de dois filhos, que saiu de Londres com quatro medalhas de ouro. Sua maior rival foi a britânica Maureen Gardner, uma professora de balé. Outra atleta, a francesa Micheline Ostermeyer, deu um recital de piano no Royal Albert Hall, um prestigiado salão de espetáculos londrino, no mesmo dia em que venceu a prova do arremesso do peso.


Todas essas campeãs eram brancas, porém. Os Estados Unidos já tinham heróis olímpicos negros, como o velocista Jesse Owens, mas as mulheres enfrentavam obstáculos quase intransponíveis. A tenista negra Ora Washington, uma das melhores do país na década de 1920, passou toda a carreira excluída de grandes competições por causa da segregação.


Alice Coachman cresceu num mundo em que afro-americanos eram proibidos de frequentar os mesmos parques que os brancos, não podiam usar o mesmo transporte público e nem matricular os filhos nas mesmas escolas

Coachman poderia ser mais uma atleta de potencial desperdiçado não fosse a ajuda da comunidade negra. Quando ainda estava no ensino médio, aos 16 anos, foi convidada para correr pela equipe do Instituto Tuskegee, uma faculdade fundada para atender os estudantes impedidos de frequentar as universidades exclusivas dos brancos.


Logo no primeiro ano, venceu o salto em altura no campeonato nacional de atletismo e virou uma das estrelas da equipe. As “tigresas de Tuskegee”, como foram apelidadas, eram a maior potência do atletismo feminino nos Estados Unidos. Além de vencer o salto em altura por todos os anos em que esteve na ativa, ela era uma das melhores corredoras do país.


A poucos meses dos Jogos de Londres, em 1948, Coachman começou a sentir fortes dores nas costas, causadas por uma torção no útero. Fez uma cirurgia e embarcou para o Reino Unido. A primeira atleta da equipe americana a entrar para a história foi Audrey Patterson. No dia 6 de agosto, ela disputou os 200 metros rasos e acabou em terceiro lugar. Tornou-se, assim, a primeira mulher negra a conquistar uma medalha olímpica.


No dia seguinte, um sábado, veio a final do salto em altura. A recordista mundial da prova, a holandesa Fanny Blankers Koen, preferiu competir apenas nas corridas e deixou o caminho aberto para as rivais. Das 19 inscritas, 17 já estavam eliminadas quando a barra chegou a 1,64 metro de altura, deixando Coachman sozinha para disputar o ouro com Dorothy Tyler, uma atleta da casa empurrada por 82 mil torcedores no estádio de Wembley. Ambas saltaram 1,68 metro, um novo recorde olímpico, mas Coachman levou o ouro por ter errado um salto a menos que a britânica.


De volta para casa, Coachman anunciou sua aposentadoria das pistas e abraçou a fama temporária. Além das homenagens, recebeu um convite da Coca-Cola para posar em outdoors, de garrafinha na mão, ao lado de Jesse Owens, uma lenda do atletismo. Foram os primeiros afro-americanos a fazer publicidade para a marca. Formou-se em economia caseira, mas passou a maior parte da vida dando aulas de atletismo. Viveu para ver as Olimpíadas de 1996, em Atlanta, quando foi novamente homenageada. Morreu em 2014, aos 90 anos, na mesma cidade onde nasceu.

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