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O caminho dos carrascos

Time da Nigéria ficou famoso ao eliminar o Brasil de Ronaldinho, mas aquele foi só o final de uma jornada tortuosa


Time da Nigéria entra em campo para enfrentar o Brasil, pela semifinal (Reprodução / Olympic Channel)

A partida parecia quase decidida quando o árbitro espanhol Garcia Aranda apitou o final do primeiro tempo. Com um gol de Bebeto e dois de Flávio Conceição, o Brasil abriu 3 x 1 sobre a Nigéria e estava a 45 minutos da final das Olimpíadas de 1996, em Atlanta. Para chegar à disputa daquele ouro inédito para o futebol nacional, os comandados do técnico Zagallo só precisavam segurar a vantagem contra um time que já haviam batido na fase de grupos, seis dias antes.


“E mesmo assim o Brasil perdeu”, lamentou Galvão Bueno, pela TV Globo, logo após a virada por 4 x 3 na prorrogação. “A Nigéria teve como grande mérito acreditar sempre, ter audácia, partir o tempo todo para o ataque, mesmo se expondo a uma goleada que poderia ser histórica”, diagnosticou Galvão. Era uma descrição do espírito que também moveria o time na final contra a Argentina. Uma nova virada no apagar das luzes, desta vez por 3 x 2, deu final feliz a um périplo bem mais longo que os seis jogos enfrentados pelos africanos para chegar até ali.


A Nigéria entrou no mapa do futebol mundial na Copa de 1994, nos Estados Unidos. Repleto de jovens talentosos, alguns dos quais estariam em Atlanta dois anos mais tarde, o time alcançou o mata-mata e só caiu diante da Itália, futura finalista, na prorrogação. A imagem da seleção, porém, foi arranhada por um evento fora da alçada de qualquer jogador.


Em novembro de 1995, a oito meses das Olimpíadas, nove ativistas nigerianos morreram enforcados na prisão sob a ditadura do general Sani Abacha. Os carrascos precisaram de cinco tentativas no cadafalso para tirar a vida de Ken Saro-Wiwa, líder dos rebeldes que seriam assassinados naquele dia. Condenados num julgamento obscuro, Saro-Wiwa e os colegas vinham lutando contra a destruição ambiental do delta do rio Níger. A área era explorada pela petrolífera Shell e abrigava um milhão de habitantes do povo Ogoni, uma minoria estabelecida havia séculos na região.


Os enforcamentos não foram um constrangimento para João Havelange, que àquela altura já acumulava duas décadas no comando da Fifa. Na mesma semana das execuções, o cartola brasileiro visitou a Nigéria e sentou-se com Abacha para tratar, entre uma e outra xícara de chá, do mundial de futebol sub-20 que o país pretendia sediar. Mas a complacência de Havelange não foi imitada por Nelson Mandela, que, da presidência da África do Sul, incitava um embargo ao petróleo nigeriano junto à comunidade internacional.


Execução de ativistas revoltou manifestantes pelo mundo conta a Shell e o governo nigeriano (Quartz Africa)

Transformado em pária global, Abacha deu a única resposta que estava a seu alcance naquele momento: de última hora, proibiu a seleção nigeriana de jogar a Copa da África, torneio bienal de seleções do continente marcado para janeiro de 1996. A separação entre esporte e política, que Havelange evocava para justificar as tratativas com Abacha, era deixada de lado pelo próprio ditador, que foi alvo de barulhentos protestos de torcedores em Lagos, sede do ministério dos esportes, pela decisão de boicotar a competição.


Uma novidade no regulamento das Olimpíadas permitia que cada time convocasse até três jogadores acima de 23 anos, a idade limite para o futebol masculino. A Nigéria usufruiu do benefício e convidou três veteranos da Copa de 1994 a se unirem aos jovens, que já estavam quase todos no futebol europeu. Kanu, a grande estrela, tinha jogado as últimas duas finais da Liga dos Campeões com o Ajax, da Holanda.


A torcida, apesar das grandes expectativas, levou uma ducha de água fria na véspera do embarque para as Olimpíadas, quando o time foi goleado num amistoso contra Togo, em casa, e saiu vaiado de campo.


Em busca de paz e privacidade, os nigerianos chegaram aos EUA semanas antes e se instalaram em Tallahassee, na Flórida. Os dirigentes, porém, não garantiram verba para todas as despesas da delegação e os atletas tiveram que pagar do próprio bolso gastos como o ônibus fretado que os levava, todo dia, ao centro de treinamento. Um dos atletas, Victor Ikpeba, contou anos mais tarde que os funcionários do hotel chegaram a se recusar a lavar os uniformes da equipe, alegando medo de contaminação pelo vírus da AIDS.


O isolamento dos atletas não proporcionou exatamente o regime de concentração que se imaginava. Alguns jogadores se ausentaram durante os treinos para negociar contratos com clubes europeus e chegaram a voar ao Velho Continente para acertar detalhes das transferências.


Na semana em que nove ativistas foram executados pelo regime de Sani Abacha, João Havelange visitou a Nigéria e sentou-se com o ditador para tratar, entre uma e outra xícara de chá, do mundial de futebol sub-20 que o país pretendia sediar.

O treinador era o holandês Jo Bonfrère, que meses antes havia pedido demissão por atrasos no pagamento e aceitou de última hora um convite para voltar. “Como técnico da Nigéria”, reclamava ele, “você é também gerente, gandula, enfermeiro e empregado da administração”. Os cartolas tentaram tirá-lo do cargo já nos EUA, mas os jogadores saíram em defesa do professor e ameaçaram uma deserção generalizada. Bonfrère ficou e pediu aos pupilos que ignorassem o mundo exterior por 90 minutos, a cada jogo, e depois voltassem a pensar nos problemas.


O conselho aparentemente deu resultado e os africanos começaram a campanha olímpica com duas vitórias, sobre Hungria e Japão. Em seguida enfrentaram a seleção brasileira, que estreou com uma derrota para os japoneses e precisava da vitória para evitar o vexame de ser eliminada, ainda na fase de grupos, com um esquadrão em mãos. O Brasil chamou os veteranos Bebeto, Aldair e Rivaldo para reforçar um time que já tinha Ronaldo, Roberto Carlos, Luizão, Juninho Paulista e o goleiro Dida. A seleção venceu por 1 x 0, gol do Fenômeno, e os dois países se classificaram.


No mata-mata, os nigerianos entraram como azarões contra México, Brasil e Argentina, mas deixaram todos para trás com o estilo valente e atrevido que Galvão Bueno exaltou após a derrota brasileira. Naquela semifinal, ficou evidente o abismo psicológico entre os times no pequeno intervalo entre o tempo regulamentar e a prorrogação. Enquanto Ronaldinho, Sávio, Juninho e outros garotos ouviam Zagallo com expressões petrificadas, os africanos pareciam saborear cada segundo.



Apesar de ser madrugada no horário local, a Nigéria parou para acompanhar a agoniante final contra a Argentina e um delírio tomou conta das ruas após a vitória. Bares esgotaram os estoques de cerveja e as rádios abriram as portas para os torcedores gritarem suas comemorações no ar. Recebidos como heróis, os jogadores foram presenteados pela ditadura com um apartamento, um terreno e uma soma em dinheiro para cada um. A vitória olímpica de 1996 foi o primeiro troféu relevante de uma seleção africana a nível mundial e permanece até hoje como um dos maiores feitos do futebol do continente.


A mesma Atlanta que serviu de palco daquela conquista voltou a cruzar o destino da Nigéria vinte anos depois. Era lá que o time nigeriano treinava para as Olimpíadas do Rio, em 2016. Faltando três dias para a estreia do time contra o Japão, em Manaus, jogadores e comissão técnica descobriram que as passagens de avião para o Brasil não tinham sido compradas. Embora o problema tenha sido resolvido a tempo, a delegação pousou no Amazonas apenas sete horas antes do primeiro jogo.


O cansaço não impediu a Nigéria de bater os japoneses por 5 x 4, mas a maior surpresa partiu de um conterrâneo dos derrotados, a milhares de quilômetros dali. A embaixada nigeriana em Tóquio foi procurada por Katsuya Takasu, um cirurgião plástico conhecido por comerciais de tevê excêntricos e atos de filantropia. Sensibilizado com os percalços dos africanos, o doutor doou 200 mil dólares para ajudar o time no Brasil e ainda prometeu um bônus aos jogadores se conquistassem uma medalha.


Com o apoio pessoal do mecenas, que viajou ao Brasil para torcer por seu time de adoção, a Nigéria chegou às semifinais e perdeu para a Alemanha, mas bateu Honduras na briga pelo bronze. Takasu cumpriu a palavra e deu mais 390 mil dólares aos medalhistas.


Sensibilizado com os peralços dos nigerianos para chegarem ao Brasil, cirurgião japonês fez uma doação e ainda viajou ao Rio para torcer pelo time, que ganhou a medalha de bronze (Twitter / Katsuya Takasu)

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