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Na cova dos leopardos

Ditadura haitiana passou os anos 70 infiltrando militares amigos nos times olímpicos. Maratonista atravessou essa era e virou um corredor de elite

Ameaçado de morte pela ditadura haitiana, Lamothe correu a maratona olímpica de 1984 e ficou em último lugar. Quatro anos depois, livre da pressão do regime, terminou num respeitável 20º lugar (Reprodução)

Estava tudo pronto para a primeira série classificatória da corrida de 5 mil metros nas Olimpíadas de 1976, em Montreal. Na pista estavam o finlandês Lasse Virén, àquela altura já dono de três medalhas de ouro, e o neozelandês Dick Quax, que ficaria com a prata nesta prova. Dada a largada, porém, quem assumiu a ponta foi um corredor desconhecido, vestido de preto. Os torcedores mais atentos espicharam o pescoço para estudar aquele atleta que ousava desafiar os favoritos. Camisa número 484. Consultaram seus guias e viram se tratar de Dieudonné Lamothe, 22 anos, do Haiti.


Lamothe completou a primeira volta na ponta e conservou a liderança por 150 metros. Então, num estalar de dedos, foi ultrapassado por todos e caiu para último. Na quarta das 12 voltas e meia do percurso, foi deixado para trás outra vez por todo o pelotão. Minutos depois, foi ultrapassado de novo. E de novo. E de novo. Quando os primeiros colocados cruzaram a linha de chegada, o haitiano ainda tinha quatro voltas para dar.


Deixado sozinho na pista, ele correu por mais de cinco minutos sob os olhares exclusivos, primeiro assustados e depois encantados, do estádio inteiro. Foi aplaudido passo a passo até concluir a tarefa, em 18 minutos, 50 segundos e 07 centésimos. A marca é, até hoje, a pior já registrada nos 5 mil metros masculinos em Olimpíadas.


O público já tinha visto cena parecida nos Jogos de 1972, em Munique, com a performance de Anilus Joseph, inscrito para os 10 mil metros. Apesar de ter 25 voltas pela frente, o haitiano largou na velocidade máxima e cobriu a primeira volta num ritmo que, se mantido, quebraria com folga o recorde mundial. Fechou os primeiros 800 metros ainda na liderança, mas o gás acabou ali. Ao soar do sino que indicava a última volta para os ponteiros, Joseph ainda tinha um quilômetro e meio a percorrer. Informado pelos árbitros sobre o déficit, preferiu bater em retirada.


Aquela foi a primeira Olimpíada de que o Haiti tomou parte durante o regime de Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc. O pai dele, Papa Doc, havia chegado ao poder em 1957 e instituído uma ditadura progressivamente autoritária e violenta até morrer, em 1971. Quando assumiu o comando do país aos 19 anos, no lugar do pai, Baby Doc deu continuidade a uma das páginas mais trágicas da história do país.


Primeiro local das Américas a ser alcançado por Cristóvão Colombo, em 1492, o Haiti passou mais de um século sob domínio da França, que fez da colônia uma produtora de açúcar com mão de obra africana. Durante a revolução francesa, em 1791, os colonizadores foram subjugados pela revolução haitiana, o único levante vitorioso de escravos que o mundo já testemunhou.


A nação foi a primeira do continente a abolir a escravatura, mas a ousadia custou caro. Temerosos de que o exemplo contagiasse sua própria população cativa, os Estados Unidos levaram 58 anos para reconhecer a independência dos haitianos, conquistada em 1804. Os franceses, inconformados com a perda da colônia, deslocaram 12 navios de guerra pelo Atlântico para obrigar o nascente país a pagar uma indenização em ouro. O valor, equivalente a mais de 20 bilhões de dólares atualmente, só foi quitado em 1947.


O Haiti foi o primeiro país das Américas a abolir a escravatura, mas a ousadia custou caro. Os EUA levaram 58 anos para reconhecer a independência do país e a França, inconformada com a perda da colônia, impôs uma indenização que só foi quitada em 1947

Foi com a ajuda dos EUA que a família Duvalier chegou ao poder dez anos depois. Os norte-americanos, que haviam acabado de transformar o Haiti num destino turístico, ajudaram a derrubar o presidente Daniel Fignolé. Tratava-se de um sindicalista que foi parceiro político de Papa Doc anos antes, quando este ainda era um médico bem quisto pela população. Fignolé ficou 13 dias no cargo até ser retirado pelos militares, que instalaram um governo provisório. Quatro meses depois, Papa Doc assumiu.


Uma de suas criações mais perversas foi o Tonton Macoute. Era um esquadrão da morte a serviço do presidente, batizado com o nome de um bicho papão mitológico que sequestra crianças para comer no café da manhã. A milícia era o braço mais violento de um regime que deixou dezenas de milhares de mortos em menos de 30 anos.


Ao herdar a presidência em 1971, Baby Doc quis sinalizar mudanças para o mundo. Criou uma nova unidade militar, os Leopardos, anunciados à imprensa mundial como a força incumbida de “assegurar a proteção da Revolução Duvalierista contra qualquer ameaça de comunismo”. E foi nesta instituição que o ditador resolveu selecionar atletas para representar o Haiti nas Olimpíadas.


Há poucos registros sobre como a turma foi reunida para os Jogos de 1972. Para os Jogos de 1976, a versão mais aceita é a de que Baby Doc mandou os escolhidos, com pouco ou nenhum preparo, começarem a treinar a quatro meses da abertura. O coronel Guy François, um aliado de Duvalier que acompanhava a equipe no Canadá, falou à agência Reuters sobre a corporação. “Os Leopardos mantêm a paz no Haiti. Daquele jeito”, disse o militar, esganando um inimigo invisível com seus braços musculosos.


Depois da primeira experiência olímpica, o presidente aparentemente tomou gosto pela coisa. Em junho de 1975, mais de um ano antes dos Jogos de Montreal, o governo haitiano lançou moedas comemorativas do evento, algo que nem o país-sede havia feito até ali. As peças foram produzidas em quantidade limitada e estavam à venda por 110 dólares cada.


Delegação do Haiti desfila na abertura dos Jogos de 1976, em Montreal (Reprodução / Olympic Channel)

O Haiti foi ao Canadá com 13 atletas, sendo 11 homens e as velocistas Marie Antoniette e Rose Gautier. Um dos identificados como Leopardo era Olmeus Charles, inscrito para a longa prova dos 10 mil metros. Teimou em finalizar o trajeto em 42 minutos e 11 segundos, 14 minutos atrás do vencedor da bateria e oito minutos e meio atrás do penúltimo colocado. Teve que dar as últimas seis voltas sozinho e atrasou o cronograma do dia. A mídia tratou ele e outros haitianos com um misto de condescendência e pieguice, como se fossem guardiões do antigo ideal olímpico de que o importante não é vencer, e sim competir.


Lamothe, que não é citado nos jornais como membro dos Leopardos, desapareceu dos registros até os Jogos de Los Angeles, em 1984, quando correu a maratona. Completou a prova na 78ª e última posição. Mas sua marca, de 2h52m18s, era bem mais razoável que o desempenho em Montreal, oito anos antes. Ao cruzar a linha de chegada, evitou dar qualquer declaração e voltou a submergir.


Àquela altura, o governo de Duvalier era alvo de forte pressão interna e de líderes como o presidente Reagan e o Papa João Paulo II. Quando a ditadura enfim caiu, em fevereiro de 1986, Duvalier fugiu com toda a família e se exilou na França. Um mês depois, a Reuters publicou uma entrevista com Dieudonné Lamothe diretamente da capital Porto Príncipe. Com Baby Doc finalmente longe, o atleta decidiu que era hora de falar.


Futebolista na juventude e convertido ao atletismo devido a uma lesão, o maratonista contou ter sido chamado inesperadamente para competir nos Jogos de 1984, a duas semanas da abertura. Segundo o atleta, os dirigentes deram 2 mil dólares a cada membro da delegação, composta de duas esgrimistas e um tenista. Menos a ele, que recebeu só 250 e ainda deixou metade com a esposa e o filho, que passavam necessidades.


Lamothe contou ter competido com medo. “Se você não correr rápido, não volte”, disse ter ouvido de um grupo de dirigentes. Sofreu por dias, isolado em seu quarto na vila olímpica, porque soube que tinham cortado a eletricidade da casa da família. No dia da corrida, acordou nauseado. Com medo de ser castigado ou morto se não completasse a prova, aguentou até o fim sem abandonar.


Já em 1985, ainda sob Duvalier, ele viajou aos EUA graças a uma vaquinha de amigos e correu a maratona de Nova Iorque. Chegou em 60º lugar com 2h26m23s, um resultado muito mais competitivo do que a participação olímpica. Em algum tempo passou a frequentar a ponta em corridas de rua em várias cidades americanas, inclusive um sexto lugar nos Jogos Panamericanos de 1987, em Indianápolis.


Apresentou-se para as Olimpíadas de 1988, em Seul, sem a repressão a persegui-lo. Num universo de 110 atletas, com vários favoritos à vitória, cruzou a linha em vigésimo lugar. Sua marca, de 2h16m15s, bastaria para a medalha de ouro de qualquer edição das Olimpíadas até 1956 e renderia a ele um lugar no pódio em todos os Jogos até 1968. Aos 34 anos, havia se convertido num corredor de elite.


À época da entrevista à Reuters em 1986, consta que Lamothe era um rapaz tímido que dominava pouco o inglês. Era arquivista de alfândega e gastava 90 dos 150 dólares mensais do salário no aluguel de uma casa de um cômodo no centro da capital. Em julho de 2020, aos 64, deu uma entrevista à rádio haitiana Alter Presse, que fazia uma série de programas sobre ídolos do esporte nacional. Falava de Atlanta, nos EUA, onde estava em quarentena desde o início da pandemia.

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