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Na cara do Führer

Velocista Jesse Owens deixou o nazismo nu debaixo da chuva, mas foi outro negro americano que fez Hitler sair do estádio de fininho

Johnson (centro) e os colegas saúdam a bandeira dos EUA no pódio do salto em altura: foi ele o primeiro negro a levar o ouro sob o olhar de Adolf Hitler (Relatório oficial dos Jogos de 1936)

Mais de 80 anos após ter conquistado quatro medalhas de ouro nas Olimpíadas de Berlim, disputadas na Alemanha nazista em 1936, o velocista Jesse Owens ainda é personagem de histórias em que o mito se confunde com a realidade. Uma narrativa corrente é a de que Adolf Hitler, grande patrocinador daqueles Jogos, abandonou o estádio irritado após uma vitória do americano para evitar cumprimentá-lo, como vinha fazendo com os outros medalhistas.


É fato que as vitórias de Owens foram um tiro de canhão nas teorias de superioridade racial que os nazistas pretendiam emplacar nas Olimpíadas. E Hitler realmente iniciou os Jogos parabenizando os vencedores em seu camarote no Estádio Olímpico de Berlim, sob o olhar de 110 mil pessoas. Mas Owens não foi o alvo direto da desfeita.


No primeiro dia de competições do atletismo, em 2 de agosto, o Führer congratulou um alemão, uma alemã e um finlandês que foram ao topo do pódio. Mas a sequência de campeões arianos foi quebrada na última prova daquele dia, o salto em altura masculino, com a vitória de Cornelius Johnson. Era um californiano de 22 anos, negro, que dividiu o quarto com Owens na vila olímpica de Wustermark, nos subúrbios de Berlim.


Não existe um consenso quanto ao exato momento em que Hitler abandonou a arena, mas sabe-se que o ditador, depois de cumprimentar os três vencedores europeus, não estava mais presente na premiação de Johnson. O belga Henri de Baillet-Latour, então presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI), fez chegar ao ditador uma advertência: ele deveria cumprimentar todos os vencedores ou nenhum.


Hitler escolheu a segunda opção e deixou de parabenizar os atletas publicamente, embora tenha recebido alguns, a seu gosto, de maneira reservada. Uma delas foi a americana Helen Stephens, uma menina de 18 anos e 1,82 metro de altura que venceu os 100 metros rasos. Stephens contou que apertou a mão de Hitler e ainda teve que dispensar um convite para um fim de semana íntimo na casa de campo do nazista, nos Alpes da Baviera.


Quando conquistou os seus 100 metros no dia seguinte, portanto, Jesse Owens foi mais um entre vários atletas a quem Hitler não prestou homenagem. Para desgosto dos organizadores, ele e os demais negros da equipe americana levaram, juntos, 12 medalhas no atletismo, sete delas de ouro.


Hitler assiste aos Jogos na tribuna do Estádio Olímpico de Berlim, com capacidade para 110 mil pessoas (Olympic Channel)

“Os negros devem ser excluídos”


Hitler ainda não havia subido ao poder quando o COI deu a Berlim, em 1931, o direito de sediar os Jogos dali a cinco anos. Os nazistas, porém, já tinham opinião formada sobre a participação de negros em Olimpíadas:


"Enquanto no passado apenas os gregos livres eram autorizados a competir, hoje se percebe que homens livres frequentemente têm que disputar os lauréis da vitória com pretos não-livres, com negros. Isso é uma incomparável desgraça e uma degradação do ideal Olímpico, e os gregos antigos se virariam no túmulo se soubessem o que os povos modernos fizeram com seus sagrados Jogos”, dizia uma edição do Völkischer Beobachter, jornal do partido nazista, em agosto de 1932.


“Os próximos Jogos Olímpicos serão em 1936 em Berlim. Espera-se que os responsáveis saibam do seu dever. Os negros devem ser excluídos. Nós esperamos isso", completava a publicação. Durante os Jogos, esta e outras políticas racistas, inclusive antissemitas, foram suspensas por pressão do COI e de potências como os Estados Unidos, onde uma proposta de boicote ao evento foi discutida entre os dirigentes americanos e derrotada por 58 votos a 56.


Quando ficou claro quem era Hitler, várias campanhas contra as Olimpíadas de 1936 foram lançadas pelo mundo. Nos EUA, a proposta de boicote aos Jogos foi discutida, mas acabou derrotada por 58 votos a 56

Enquanto os cartolas discutiam, Owens saía do anonimato. Em 25 de maio de 1935, a pouco mais de um ano da Olimpíada, o estudante quebrou cinco recordes mundiais em um período de 45 minutos numa competição local, apesar de estar lesionado. Ele chegaria a Berlim como favorito a vencer os 100 e os 200 metros, além do salto em distância.


James Cleveland Owens nasceu em 12 de setembro de 1913 no Alabama, estado sulista com forte herança escravocrata. Owens, ele mesmo um neto de escravos, era o décimo filho de um casal de agricultores que mudou-se com a família para Ohio, ao norte, após ter uma safra arruinada por pragas.


O apelido Jesse nasceu por acaso, graças à maneira como uma professora pronunciou suas iniciais, “J.C”. Foi na escola que Owens teve o talento descoberto e começou a treinar. Aos 18 anos, ele tentou sem sucesso uma vaga nas Olimpíadas de Los Angeles, em 1932. Durante aqueles Jogos, em 8 de agosto, tornou-se pai. Nos anos seguintes, seu desempenho na pista evoluiu de tal forma que ele já detinha a melhor marca do mundo na prova de 100 jardas antes da histórica quebra de recordes em 1935.


Apesar do pedido de entidades como a Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês) para que não participasse dos Jogos, Jesse decidiu competir. E cruzou o Atlântico com a delegação americana a bordo do navio SS Manhattan rumo a Hamburgo, na Alemanha, onde desembarcou no dia 24 de julho.


Owens começou sua jornada nos 100 metros rasos, que venceu facilmente. No dia seguinte, 4 de agosto, o americano tinha pela frente o salto em distância, no qual era recordista mundial com 8,13 metros. Tratava-se de uma marca assombrosa, que só foi superada 25 anos depois.


A disputa desta prova em Berlim deu origem a outra história controversa. Segundo a versão popular, Jesse esteve a um passo de ser eliminado ainda na fase classificatória após desperdiçar as duas primeiras tentativas de saltar 7,15 metros, o mínimo requerido para ir à final. Antes da chance derradeira, o americano teria recebido um conselho do recordista europeu, o alemão Carl “Luz” Long, para que pisasse mais longe da tábua de impulsão e não queimasse o salto. Owens teria seguido a dica e, assim, evitado a eliminação precoce.


Há divergências sobre a existência dessa conversa e o próprio Owens teria confessado, anos depois, que só deu força a essa narrativa porque era algo que as pessoas gostavam de ouvir. O fato é que Jesse derrotou Luz em uma dura batalha pelo ouro e os dois tiveram uma relação amistosa, o que foi registrado em fotografias. Terminada a competição, Long teria sido advertido pelos nazistas a “nunca mais abraçar um negro”.


A colheita de ouros continuou nos 200 metros, prova em que a medalha de prata foi conquistada por outro afro-americano. Em tese, a missão de Owens estava completa, mas uma nova polêmica prolongou sua passagem pelas pistas de Berlim.


Jesse não estava escalado para disputar o revezamento 4 x 100 metros com a equipe estadunidense. Na véspera da corrida, porém, os atletas Marty Glickman e Sam Stoller foram substituídos por Owens e Ralph Metcalfe, medalhista de prata nos 100 metros. A decisão, justificável do ponto de vista técnico, levantou suspeitas porque Glickman e Stoller eram judeus, os únicos da delegação americana. Nunca se comprovou que houve motivação racial na decisão dos treinadores, mas Owens correu, venceu e completou sua coleção de quatro ouros.

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