top of page

Não corro mais

Updated: Apr 18, 2021

O Japão elevou um maratonista ao panteão dos heróis olímpicos, mas descobriu que ele era um mortal

Em entrevistas, parentes do maratonista contam que ele foi aconselhado, pelo pai, a nunca olhar para trás (Arte - Henrique Neves)

Aviso: esta reportagem tem como eixo central a história de um suicídio. Há a breve descrição de uma carta de suicídio, incluindo um trecho literal. O método do suicídio é identificado, mas não há qualquer informação adicional sobre ele. No texto original (publicado às 02h de sábado, 17 de abril) havia uma foto da carta e um link para a foto, mas ambos foram removidos por orientação de um especialista. Seguimos abertos a sugestões sobre esta ou qualquer outra publicação


Ainda era madrugada quando Kokichi Tsuburaya começou a escrever uma carta à família. Agradeceu aos parentes pelas refeições compartilhadas, roupas lavadas e favores prestados. Pediu desculpas pelos incômodos, desejou às crianças que virassem bons adultos e, ao final, se explicou: "Kokichi está muito cansado para continuar correndo". Terminado o texto, passou uma lâmina no pescoço e morreu, aos 27 anos.


Menos de quatro anos antes de redigir sua nota de suicídio, Tsuburaya subia ao pódio da maratona na Olimpíada de 1964, em Tóquio. Sua medalha de bronze foi a única do Japão no atletismo naqueles Jogos, mas a conquista teve uma ponta de anticlímax: depois de percorrer 42 quilômetros pelas ruas e entrar no estádio em segundo lugar, o japonês não resistiu a uma potente arrancada do britânico Basil Heatley, que vinha em seus calcanhares, e foi ultrapassado na última curva. Cruzou a linha de chegada, foi enrolado por auxiliares numa toalha branca e desabou no gramado, diante de 70 mil espectadores.


Tsuburaya entrou no estádio em segundo, mas foi ultrapassado na última curva


O país que voltará a sediar os Jogos Olímpicos em 2021 abraçou com entusiasmo sua primeira experiência, quase seis décadas atrás. Os organizadores e a população queriam apresentar ao mundo o Japão que emergiu da Segunda Guerra, disposto a adotar de vez o ocidente e seu modo de vida. Quem acendeu a pira olímpica na cerimônia de abertura foi Yoshinori Sakai, um jovem de 19 anos nascido nas cercanias de Hiroshima na data do bombardeio nuclear. Foi por estarem em franca mobilização para o conflito que os japoneses abdicaram de sua primeira oportunidade de promover a Olimpíada, em 1940.


Decidido a deixar uma boa imagem, o Japão preparou uma festa impecável em 1964, e o desempenho dos atletas satisfez a expectativa. A equipe colheu 29 medalhas, 16 delas de ouro – abaixo apenas de EUA e União Soviética –, mas o sucesso não evitou algumas estocadas no orgulho nacional. Uma delas foi a derrota de Akio Kaminaga no judô, esporte que o país dominava amplamente e que estreava em Olimpíadas. Na final da antiga categoria aberta, feita para atletas sem limite de peso, Kaminaga foi presa fácil para os dois metros e 120 quilos do holandês Anton Geesink, o campeão mundial. Nos primeiros Jogos com transmissão de TV via satélite, o fracasso foi exposto em escala global.


No caso da maratona, houve mais consternação com a cena da ultrapassagem do que propriamente o luto da derrota. Ovacionado, Tsuburaya era o primeiro japonês a ir ao pódio numa maratona olímpica. O país havia levado o ouro e o bronze na prova em 1936, mas os dois medalhistas eram na verdade sul-coreanos. Ambos tinham sido forçados a renunciar a seus nomes de nascimento e a correr sob a bandeira da Japão que, em sua escalada imperialista, dominou os vizinhos por mais de três décadas. Agora, com Tsuburaya, o país tinha um ídolo da modalidade para chamar de seu.


Com vários corredores de elite no início dos anos 60, os japoneses escalaram três maratonistas de ponta para a Olimpíada, incluindo um colega de Tsuburaya que chegou a deter o recorde mundial. As expectativas dos moradores de Tóquio eram tão elevadas que houve até quem acampasse na calçada para garantir um bom lugar à beira da rua no dia 21 de outubro, a partir das 13h, para ver de perto a passagem dos 68 competidores de 35 países. Estima-se que 500 mil espectadores se aglomeraram ao longo do circuito.


Tsuburaya passa diante do público em Tóquio: estima-se que 500 mil pessoas se aglomeraram ao longo do percurso (Asahi Shimbum)

A disputa pelo ouro não existiu. Antes da metade da corrida, o etíope Abebe Bikila já liderava sem opositores. Ícone dos Jogos anteriores com sua vitória em Roma, quando correu de pés descalços e inaugurou a fábrica de heróis olímpicos da África negra, Bikila triunfou no Japão com supremacia absoluta. Alargou sua vantagem na ponta a cada passo, bateu o recorde mundial, divertiu a plateia com exercícios irreverentes e declarou que poderia ter corrido mais dez quilômetros no mesmo ritmo, o que parecia óbvio.


Seus perseguidores mais próximos, Tsuburaya e Heatley, só chegaram quatro minutos depois. No vídeo da corrida, um detalhe chama a atenção em meio ao drama da ultrapassagem. O público no Estádio Nacional de Tóquio ruge com a chegada do japonês, de cabelos raspados e expressão sôfrega, mas imediatamente vê que o atleta da casa não está sozinho. Fosse pelos gritos da arquibancada ou por ter ouvido os passos do britânico logo antes de entrar na pista, é difícil imaginar que Tsuburaya ignorasse que tinha um adversário na cola. Apesar disso, ele simplesmente não olha para trás em momento algum até ser desmoralizado pelo sprint irresistível do rival.


O comportamento é raríssimo nas provas longas do atletismo, em que os atletas costumam checar constantemente a posição dos oponentes. Para Tsuburaya, aquela atitude tinha uma explicação paternal. Nascido em 1940, caçula entre os sete filhos – seis homens – de um militar que deu baixa para criar a família na zona rural, o garoto Kokichi começou a correr com os irmãos, nos arredores de casa, e passou a competir em idade escolar. Em entrevistas, parentes do maratonista contam que ele foi aconselhado pelo pai a limitar-se a dar o melhor de si na corrida, sempre, sem jamais mirar por cima dos ombros.


É difícil imaginar que Tsuburaya ignorasse que tinha um adversário na cola. Apesar disso, ele simplesmente não olha para trás em momento algum até ser desmoralizado pelo sprint irresistível do rival.

A carreira de Tsuburaya ficou séria quando ele próprio decidiu juntar-se às Forças de Autodefesa, o exército refundado no pós-guerra. Educado com rigor desde a infância, o atleta adaptou-se sem problemas à disciplina dos quartéis, onde foi forjado para disputar os 5 mil e os 10 mil metros. Foi pensando somente em fortalecer-se para essas provas que ele se inscreveu para a primeira maratona de sua vida, em março de 1964. Na segunda experiência, em abril, ficou em segundo lugar e garantiu vaga no time que defenderia o Japão nas Olimpíadas dali a seis meses.


Passados os Jogos e a medalha, a rotina do corredor se transformou. Além de uma condecoração militar, Tsuburaya recebeu uma avalanche de convites para dar palestras e participar de eventos esportivos. Mas seu desempenho nas pistas começou a cair em 1965 e não parou mais. O principal motivo eram dores nas costas, um fardo que Tsuburaya carregava desde criança e do qual nunca se libertou.


Os maus resultados, porém, não o desviaram do foco de ir às Olimpíadas seguintes em 1968, na Cidade do México. Foi por causa delas que o japonês adiou, em 1966, seu casamento com Eiko, uma garota que ele conhecera havia alguns anos e com quem pretendia, inicialmente, ter se casado logo após os Jogos de Tóquio em 1964.


A pressão para postergar o casamento partiu de um alto oficial do exército, que queria ver Tsuburaya devotado exclusivamente às Olimpíadas do México. Seu treinador, o tenente Hiroo Hatano, tentou interceder pelo pupilo, mas acabou punido com um rebaixamento de patente e deixou de tutelar o maratonista. Eiko, a futura noiva, estava disposta a esperar, mas a família dela não concordou e rompeu o arranjo.


Duplamente abandonado, Tsuburaya mergulhou nos treinos, mas começou a ficar longe do pódio até em inexpressivos torneios locais. Pouco depois de um deles, em agosto de 1967, lesionou o tendão de aquiles. Foi parar no hospital e viu-se obrigado a operar também uma velha hérnia de disco. Ao receber alta e retomar os treinos, em novembro, percebeu desalentado que não tinha mais condições de competir em alto nível.


Chegou o fim do ano e ele foi liberado para passar a virada na casa da família. Por aqueles dias, seu pai ficara sabendo que a ex-namorada de Tsuburaya havia casado com outro homem. Depois de alguma hesitação, decidiu contar a novidade ao filho, que pareceu reagir estoicamente: “Bom para ela”.


Passadas as festas, o maratonista despediu-se da família e retornou ao quartel. Na madrugada de 8 de janeiro de 1968, três dias depois de voltar, sentou-se à mesa de seu alojamento e escreveu dois recados. Num deles, lacônico, pediu desculpas aos superiores por não ter conseguido “manter a promessa” e desejou sorte aos colegas nas Olimpíadas do México. Foi na carta mais longa, à família, que ele finalizou uma série de amenidades com a constatação de que não tinha mais forças para correr. Os militares encontraram o corpo de Tsuburaya, já sem vida, antes que o quarto fosse iluminado pelos primeiros raios de sol.

2 comentários


Bruno Bucis
Bruno Bucis
19 de abr. de 2021

Belíssima escrita

Curtir

Natália Gonçalves
Natália Gonçalves
18 de abr. de 2021

Essa história aperta o coração. Obrigada por contar.

Curtir
bottom of page