Dupla de velocistas carregava as esperanças da Grécia, mas sumiu do mapa às vésperas do exame antidoping

Depois de passar pelas mãos de 11 mil pessoas em 27 países, num percurso de 86 mil quilômetros por mais de quatro meses, a tocha foi conduzida para dentro do Estádio Olímpico de Atenas na noite de 13 de agosto de 2004. Já na arena, sob os olhares de 72 mil pessoas, o fogo foi carregado por cinco ídolos do esporte grego até ser entregue a Nikolaos Kaklamanakis, medalha de ouro no windsurf nos Jogos de 1996.
Vestido de branco da cabeça aos pés, ele trotou por um corredor aberto entre os atletas no centro do gramado e subiu um lance de escadas. Contemplou a multidão, deu meia volta e acendeu a pira olímpica, uma gigantesca coluna em formato de folha de oliveira que curvou-se obediente para ser incendiada.
O papel apoteótico da cerimônia de abertura foi dado de última hora ao velejador. O portador original da honraria era o corredor Konstantinos Kenteris, campeão dos 200 metros rasos na Olimpíada anterior e forte candidato a repetir o título. Mas Kenteris não compareceu à festa: estava internado num hospital.
Vinte e quatro horas antes do início dos Jogos de 2004, os dirigentes esportivos da Grécia estavam em pânico. Kenteris e sua colega de treinos, a também velocista Ekaterini Thanou, não haviam aparecido para um teste antidoping obrigatório no final da tarde. Com o passar das horas, o sumiço irritou o presidente do Comitê Olímpico Internacional, Jacques Rogge, que convocou um comitê disciplinar para ouvir a dupla no dia seguinte.
Naquele momento, porém, o paradeiro das estrelas do atletismo local foi revelado pela televisão: ambos tinham sofrido um acidente de moto quando tentavam voltar às pressas à Vila Olímpica para o exame. O hospital comunicou que Kenteris tinha uma leve concussão, uma torção no pescoço e feridas nas pernas, e Thanou estava machucada no abdômen, quadril e coxas.
O COI desconfiou. Apesar de nunca terem testado positivo para qualquer substância ilegal, Kenteris e Thanou registravam um estranho histórico de fugas de testes antidoping. A escapada mais recente tinha sido naquela mesma semana, quando eles não foram encontrados no endereço indicado para um exame em Chicago. E não era um caso isolado. No ano anterior, a dupla avisara os fiscais que estava treinando na Ilha de Creta, mas só deu as caras no Catar, a três mil quilômetros dali.
Os velocistas disseram ter perdido o exame antidoping porque sofreram um acidente de moto. Mas a polícia não registrou nenhum acidente de trânsito no local apontado pelos atletas, nenhuma ambulância foi chamada e nem havia sinal da tal motocicleta
Até vencer os 200 metros nos Jogos de Sydney, em 2000, Kenteris era um velocista desconhecido, sem nenhuma grande conquista. Muitos rivais atribuíram o triunfo ao treinador dele, Christos Tzekos, que já havia cumprido uma suspensão de dois anos por impedir que quatro de seus pupilos passassem por um exame antidoping na Alemanha. Tzekos também treinava Ekaterini Thanou, que levou a medalha de prata dos 100 metros em Sydney de forma igualmente surpreendente.
Mas a torcida grega parecia imune a essa nuvem de ceticismo. Kenteris foi alçado ao status de celebridade e tinha o rosto estampado em peças publicitárias por todo o país. Virou até nome de rua em sua cidade natal, na ilha de Lesbos. Com sua vitória na Austrália, ele foi o primeiro homem a levar um ouro para a Grécia no atletismo desde a legendária vitória de Spiridon Louis na maratona da primeira Olimpíada da era moderna, em 1896.
Nos dias que se seguiram ao acidente, o público grego e boa parte da imprensa insistiam em tratar os velocistas como vítimas de um plano de dirigentes e patrocinadores americanos para tirá-los da disputa e garantir a vitória de corredores dos Estados Unidos.
As suspeitas, no entanto, se empilhavam: a polícia não registrou nenhum acidente de trânsito no local apontado pelos atletas, nenhuma ambulância foi chamada e nem havia sinal da tal motocicleta. A versão dos corredores era a de que haviam sido resgatados por um motorista, que teria os deixado num hospital a 25 quilômetros do local do acidente, apesar de haver outro a apenas 10 cv quilômetros dali.
Ambos passaram cinco dias internados e deixaram o hospital cercados de repórteres, fotógrafos e cinegrafistas, sem qualquer ferimento aparente. No dia seguinte, foram interrogados brevemente pelo COI e, para decepção geral, abdicaram de disputar as Olimpíadas. A torcida não deixou de expressar sua amargura e gritou, em peso, o nome de Kenteris na final dos 200 metros, corrida para a qual os ingressos haviam se esgotado mais de um ano antes.
A investigação avançou sobre o treinador Tzekos. Num depósito mantido por ele, policiais encontraram 30 caixas de esteroides e 1,4 mil caixas de suplementos alimentares com efedrina, uma substância proibida. Tempos depois, autoridades americanas descobriram emails do técnico grego para Victor Conte, presidente do BALCO – um laboratório na Califórnia responsável pela distribuição de drogas ilegais para dezenas de atletas olímpicos. Os dois negociavam a compra de THG, um esteroide projetado para passar nos testes antidoping comuns sem ser detectado.
Em dezembro daquele mesmo ano, a Federação Internacional de Atletismo decidiu banir a dupla grega por dois anos. Para Kenteris, que estava com 31, o gancho significou o fim de sua carreira. Thanou, dois anos mais jovem, ainda tentou voltar, mas só acumulou mais dissabores: ela chegou a se classificar às Olimpíadas de 2008, em Pequim, mas foi pressionada a não competir e acabou excluída dos Jogos pelo COI.
Passadas as punições esportivas, faltava o veredicto da Justiça grega, que só se debruçou sobre o caso em 2011. Em maio, Kenteris e Thanou foram condenados por falso testemunho, assim como o treinador Tzekos, sete médicos do hospital que abrigou a dupla e duas testemunhas oculares que afirmaram terem visto o acidente. Mas os réus recorreram e, em setembro daquele mesmo ano, todos – exceto Tzekos – acabaram absolvidos. Segundo o tribunal de apelação, não havia provas cabais de que o acidente foi forjado.