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Esculpido no deserto

Preso pelo governo dos EUA durante a Segunda Guerra, menino asmático aprendeu a levantar peso no cárcere e virou bicampeão olímpico


Carregando pouco mais que as roupas do corpo, a família de Tommy Kono foi expulsa de casa pelo governo dos EUA, durante a Segunda Guerra, e obrigada a viver num campo de internamento

Tommy Kono mal tinha completado 12 anos quando foi levado, com mãe, pai e irmãos, para um campo de concentração no norte da Califórnia. Carregando pouco mais que as roupas do corpo, a família foi expulsa de casa pelo governo dos Estados Unidos e colocada num trem, sem saber para onde ia. Estavam prestes a seguir o destino de outros 120 mil americanos: presos em seu próprio país pelo crime de terem origem japonesa.


O lugar onde viveriam por três anos e meio tinha alojamentos austeros, como num quartel, divididos em pequenos quartos, feitos para abrigar famílias inteiras. E foi naquele pedaço de chão deserto, seco e sem água encanada que Kono aprendeu a levantar peso. Dez anos depois de chegar ao confinamento como uma criança franzina e asmática, ele levou a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Helsinque, em 1952.


Os destinos do menino e do esporte que mudaria sua vida se cruzaram no dia 7 de dezembro de 1941. Naquela manhã de domingo, o exército japonês atacou a base naval de Pearl Harbor, no Havaí, e matou 2,4 mil pessoas. Pouco mais de dois meses depois, o presidente Franklin Roosevelt autorizou as forças armadas a criarem “áreas militares”, para onde poderiam levar qualquer suspeito de sabotagem ou espionagem.


Foi a senha para que o governo, sem critério, começasse a desapropriar famílias inteiras e atirá-las num dos 10 campos de internamento construídos nos meses seguintes. Cerca de dois terços dos 120 mil encarcerados tinham cidadania americana e muitos jamais haviam pisado no Japão, mas qualquer indivíduo com pelo menos 1/16 de linhagem nipônica era alvo potencial das remoções forçadas.


A família de Kono foi presa no campo de Tule Lake, que acabou tornando-se a maior e mais repressiva das unidades. Para lá eram levados todos os que se rebelavam nos outros campos ou davam respostas insatisfatórias numa espécie de “questionário de lealdade”, com 28 questões, que foi distribuído aos presos. Por abrigar as pessoas que o governo considerava perigosas, o campo foi rebatizado para “Centro de Segregação Tule Lake” e virou um complexo fortificado de segurança máxima. A população saltou de 12 mil para quase 19 mil pessoas.


Kono contava que seus pais, produtores de frutas em conserva, ficaram inicialmente indignados com o tratamento dado pelos EUA, mas eventualmente se conformaram e lá tentaram viver da melhor forma possível. Com a ideia de dar esporte e lazer às crianças, os pais do bloco em que ele morava venderam hambúrgueres para comprar uma bola de basquete, dois pares de luvas de boxe e uns halteres.


Dos 120 mil encarcerados, cerca de dois terços tinham cidadania americana e muitos jamais haviam pisado no Japão, mas bastava 1/16 de linhagem nipônica para virar alvo potencial das remoções forçadas
Campo de Tule Lake, na Califórnia, chegou a ter 20 mil presos (Museu Nacional Nipo-americano)

Mesmo antes da Segunda Guerra, Kono já tinha interesse pelo halterofilismo. Gostava de ler a revista Strength and Health, pioneira no expediente de estampar, na capa, atletas de sunga em corpos esculturais. Certo dia, viu uma peça publicitária de Charles Atlas, um bodybuilder italiano que fez sucesso nos EUA na primeira metade do século XX, e quis fazer o curso de halterofilismo, mas o preço era proibitivo.


Parecia impossível, de toda forma, que ele tivesse algum futuro no ramo. Sofria para respirar desde os dois anos, perdia um terço de seus dias de aula por causa da asma e o problema persistia apesar de uma série de tratamentos não convencionais, buscados pelos pais. Na primeira vez em que foi convidado a levantar uma barra pelos amigos mais velhos, no campo de concentração, era um baixinho de 14 anos que não chegava a 50 quilos.


Mas foi amor à primeira vista. Kono tomou gosto pelos ferros, levou a sério e começou a sentir a saúde melhorar. Ironicamente, o halterofilista atribuía sua convalescença não só à atividade física em si, como também à região onde viveu contra a vontade. Aparentemente, o ar seco do deserto californiano lhe fez bem aos pulmões, acostumados à alergia ao pólen que o acometia desde a infância em Sacramento, capital do estado.


O jovem dobrou os céticos – inclusive o pai – e já era mais forte e saudável quando a família foi finalmente libertada em dezembro de 1945, quatro meses depois dos bombardeios atômicos e da rendição do Japão. Voltando para casa, o adolescente construiu uma academia na própria garagem, começou a competir e a vencer.


É o Arnold que me conhece


A falta de lealdade que os EUA viam nos nissei não os impediu de convocá-los para o serviço militar. No estouro da Guerra da Coreia, em 1950, Tommy Kono era um recruta num quartel da Califórnia. Estava de prontidão para ser despachado, com sua tropa, quando foi chamado num canto. Os oficiais souberam que tinham ali um potencial campeão olímpico e resolveram mantê-lo em casa. A explicação para o privilégio era simples: os americanos não queriam abrir mão de nenhum nome com chances de derrotar os russos.


Desde que se formara em 1922, a União Soviética nunca tinha ido a uma Olimpíada. Passada a Segunda Guerra, porém, os soviéticos elegeram o esporte como um dos palcos da Guerra Fria contra os EUA. Em 1948, nos Jogos de Londres, o time de Stalin não mandou nenhum atleta, e sim um batalhão de pesquisadores, que colheram imagens e informações. Com base nos estudos, implantaram uma fábrica de medalhistas que já prometia dar frutos na estreia olímpica do país, em 1952. Por quase três décadas a partir dali, as duas potências mediram forças palmo a palmo a cada quatro anos.


Poupado da guerra pela rivalidade com os soviéticos, Kono construiu a sua própria com os adversários russos. A cortina de ferro nunca parou muito de pé no mundo do halterofilismo, no qual os americanos competiam frequentemente e até treinavam com atletas do bloco socialista. Simpático, Kono foi sete vezes à URSS nos anos 50 e era muito popular entre os adversários. Ele afirmava aos jornais que o levantamento de peso era popular na Rússia como era o baseball nos EUA.


O americano venceu duas Olimpíadas, em 1952 e 1956, e em ambas deixou a prata com um membro do time soviético. Com os rivais, Kono travava guerras psicológicas à base de olhares. “Quando Kono me olha do canto do ginásio, é como uma cobra píton mirando um coelho”, dizia Fyodor Bogdanovsky, um adversário corriqueiro.


Quando criança, Kono gostava de ler a revista Strength & Health. Crescido, estampou duas capas (Arquivo Strength & Health)


Foi também um russo que finalmente o superou em 1960, nos Jogos de Roma, quando Kono buscava o tricampeonato olímpico. Pouco antes de morrer, em abril de 2016, o ex-atleta confessou numa entrevista que nem sabia onde tinha guardado aquela medalha de prata. “Eu fiquei muito desapontado. Porque aquela foi a primeira vez que eu fui derrotado, depois de tantos anos de halterofilismo”, disse ele ao documentário Arnold Knows Me: The Tommy Kono Story.


Como informa o título do filme, foi Arnold Schwarzenegger quem primeiro conheceu Kono, e não o contrário. O encontro aconteceu em 1961, em Viena, durante o mundial de levantamento de peso. Kono defendia uma série invicta que durava oito anos, mas daquela vez acabou em terceiro lugar. Logo depois, todavia, recuperou-se e venceu o mundial de bodybuilding, do qual já era tricampeão. Arnold, então um garoto de 14 anos que ainda morava na Áustria, viu tudo das arquibancadas.


Além de levantar peso, Kono também teve sucesso no reino que consagraria, uma geração mais tarde, os músculos de Schwarzenegger. Quando venceu pela primeira vez o mundial de bodybuilding, torneio à época chamado de Mr. World, ganhou um imponente vaso de porcelana com a inscrição “O Atleta mais Belo do Mundo”.


Estudioso dedicado do esporte, Kono já se queixava em sua época do estereótipo do halterofilista burro, algo que sempre incomodou Schwarzenegger. Preenchia cadernos e mais cadernos com observações nos treinos. De família budista, atribuía muito de suas conquistas à sua força mental e capacidade de concentração na hora das provas. Em 1965, durante uma competição, começou a pensar no filho de 2 anos ao se agachar para levantar a barra. Foi ali que ele viu que era o momento de parar.


As quase duas décadas que separaram Tommy de Arnold viram uma brusca transição no levantamento de peso. Kono foi bicampeão olímpico sem jamais ter um treinador, o que parece impensável nos dias de hoje. E só no final da carreira ele começou a ouvir falar em doping, um fantasma que assombra o esporte até hoje: desde 1972, quando o primeiro levantador de peso foi desclassificado pelo uso de esteroides, 97 atletas da modalidade já caíram no antidoping durante os Jogos Olímpicos.

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