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Copa Libertadores de Berlim

Eliminado da Olimpíada no tapetão, Peru descontou a raiva na Alemanha de Hitler


Em campo, Peru venceu a Áustra por 4 x 2, mas os europeus pediram a anulação da partida e a Fifa concordou (Keystone View)

Milhares de peruanos se reuniram para comemorar na Praça San Martín, no centro de Lima, na tarde de 8 de agosto de 1936. Tinham acabado de ouvir pelo rádio a seleção do país derrotar a Áustria por 4 x 2, na prorrogação, e garantir vaga na semifinal do futebol dos Jogos Olímpicos de Berlim. Da praça, os torcedores esticaram a festa em direção ao palácio do governo, onde o presidente Oscar Benavides saudou o povo pela varanda. Até o arcebispo de Peru enviou sua mensagem de parabéns ao time, que carregava as esperanças do país de conquistar uma medalha em sua primeira participação olímpica.


O que a população peruana não sabia, naquela noite de alegria, é que do outro lado do Atlântico a Áustria estava pedindo a anulação do jogo. Em protesto enviado à Fifa, os dirigentes alegaram que invasores tinham entrado no gramado e agredido um jogador austríaco, o que prejudicou o andamento da partida. A reclamação foi avaliada por um comitê de cinco homens, todos europeus, liderado pelo francês Jules Rimet, o idealizador da recém-criada Copa do Mundo.


No final da manhã de segunda-feira, 10 de agosto, os cartolas deram razão à Áustria, anularam o duelo e marcaram um novo para aquele mesmo dia, às cinco da tarde. Desta vez com portões fechados, para evitar a interferência do público. Revoltados com a decisão, os peruanos nem se deram ao trabalho de aparecer. A Áustria entrou sozinha em campo e foi declarada vencedora.


A notícia chegou a Lima naquela noite. O mesmo palácio presidencial que tinha presenciado a celebração pelo triunfo, dois dias antes, desta vez reunia 20 mil pessoas iradas. Jovens estudantes, a maioria. Da sacada do prédio, Benavides anunciou à multidão: para defender a honra do Peru depois da “ardilosa decisão” tomada em Berlim, ele havia ordenado que toda a delegação do país, não só o time de futebol, batesse em retirada e voltasse para casa.


Os manifestantes aplaudiram a atitude da equipe, mas descontaram sua frustração no bode expiatório que tinham à mão: a Alemanha nazista. Nos dias que se seguiram, a embaixada alemã em Lima foi apedrejada e também houve ataques contra empresas e filiais bancárias do país. Navios alemães ficaram parados no porto de Callao porque os estivadores se recusavam a carregá-los.


O incidente diplomático só foi estancado quando os próprios dirigentes peruanos esclareceram que a eliminação do time era responsabilidade da Fifa, e que os alemães não tinham nada a ver com isso. Para botar panos quentes na história, preferiram culpar os “comunistas” pelos protestos, mas não houve maiores consequências.


“Os peruanos, com suas danças negras, com sua selvageria e suas canções de batalha nos irritavam bastante”, escreveu o ex-jogador Willy Schmieger para o jornal Kronen- Zeitung, da Áustria. Em menos de dois anos, o país virou parte da Alemanha nazista

Nunca se soube exatamente o que aconteceu no jogo que selou o destino dos peruanos. Como não há registro em vídeo, diferentes versões circularam ao longo do tempo. O que é certo é que o Peru, depois de ter despachado a Finlândia com um 7 x 3 na primeira fase, entrou em campo como favorito contra os austríacos. Os europeus tinham um dos melhores times do mundo na década de 1930, mas estes atletas não estavam em Berlim: por sua condição de profissionais, estavam impedidos de atuar na Olimpíada e deram lugar a amadores desconhecidos. Já os peruanos, que só profissionalizaram seu futebol em 1951, foram à Alemanha com o que tinham de melhor.


Sob este cenário, foi uma surpresa quando a Áustria abriu uma vantagem de 2 x 0 no primeiro tempo. O placar ainda se mantinha assim a 15 minutos do fim do jogo, quando enfim o Peru reagiu, empatou e forçou a prorrogação.


Foi no tempo extra que a controvérsia começou. A Fifa afirmou que o campo foi invadido por “espectadores”, sem especificar quantos nem quem seriam, e que um deles teria agredido com chutes um jogador austríaco. Quando a partida foi retomada, o Peru marcou dois gols em dois minutos e o jogo acabou logo em seguida.


Há relatos distorcidos de ambas as partes. Um jornal britânico, Daily Sketch, chegou a noticiar que mil peruanos teriam ocupado o gramado com barras de ferro, facas e até um revólver, mas a afirmação não tem amparo em outros depoimentos e nas poucas fotos da partida, que não flagraram invasão nenhuma.


O incômodo da imprensa austríaca com o comportamento da torcida adversária ia além da invasão do campo, e foi extravasado com racismo. “Os peruanos, com suas danças negras, com sua selvageria e suas canções de batalha nos irritavam bastante”, escreveu o ex-jogador e jornalista esportivo Willy Schmieger. Outro jornal preferiu atacar os jogadores e acusou “especialmente os negros” de apelarem para “truques baixos”.


Do lado peruano, os exageros que se perpetuaram não foram propriamente sobre o jogo, mas sobre os bastidores da eliminação. Escreveu-se, por exemplo, que o próprio Adolf Hitler havia mexido os pauzinhos para virar a mesa a favor da Áustria, mas não há qualquer indício de que o nazista tenha se metido no assunto. Na retórica inflamada com que repudiaram a decisão da Fifa, os peruanos afirmaram que o time “sem dúvida” seria o campeão olímpico, embora ainda houvesse mais dois jogos pela frente.


A tese do “título moral”, de toda forma, foi a que prevaleceu no Peru. Quando finalmente voltaram para casa, no dia 17 de setembro, os jogadores foram recepcionados como heróis nacionais e receberam vários presentes, inclusive medalhas de ouro. Uma revista local publicou um pôster com uma foto dos jogadores em formação antes da partida contra a Áustria. Acima da imagem, estamparam: “Los campeones olimpicos de fútbol en la XI Olimpíada de Berlin”.


Seleção peruana abandonou as Olimpíadas em protesto contra a Fifa. Mas para uma revista local, o Peru foi o campeão (Reprodução / Don Balón)

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