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A mãe de todas as amazonas

“Aposentada” pelos médicos ao contrair paralisia infantil, dinamarquesa reaprendeu a andar a cavalo e abriu caminho para as mulheres no hipismo olímpico


O ano era 1944 e a Dinamarca estava ocupada pelos nazistas, mas a vida de Lis Hartel corria relativamente bem. De família rica, casada e mãe de uma criança, praticava hipismo mesmo naqueles anos duros e era bicampeã nacional de adestramento. Numa manhã de setembro, porém, acordou com dores e uma rigidez esquisita no pescoço. Aos 23 anos e grávida da segunda filha, Hartel estava com poliomielite, a temida paralisia infantil.


Registrada desde a pré-história, a poliomielite teve uma explosão de casos na Europa no começo do século XX e chegou ao auge justamente na década de 1940, quando deixava cerca de 500 mil pessoas mortas ou paralisadas por ano no mundo. Cientistas trabalhavam firme em busca de uma vacina, que viria já em 1950, mas Hartel não teve oportunidade de tomá-la. Passou 16 dias no hospital e saiu quase sem poder movimentar braços e pernas.


Os primeiros meses da doença foram devastadores. Nas fases mais agudas, a dinamarquesa precisou recorrer até ao “pulmão de aço”, uma máquina hoje obsoleta que fazia o papel dos músculos respiratórios, atingidos pelo vírus. Confinada a uma cadeira de rodas, ouviu logo dos médicos a sentença de que nunca mais poderia cavalgar.


Com o tempo, todavia, Hartel começou a ganhar terreno contra o mal que a atacava. Deu à luz a filha, que nasceu saudável, e começou a recobrar o movimento dos braços. Aos poucos, arrastava-se para fora da cama sozinha e passava a andar de muletas. Até que em 1947, três anos depois de ser infectada, estava de volta ao hipismo.


Nas fases mais agudas da pólio, Lis Hartel precisou recorrer até ao “pulmão de aço”, uma máquina hoje obsoleta que fazia o papel dos músculos respiratórios, atingidos pelo vírus

Mas a pólio é uma doença incurável. Embora os sintomas sejam tratados tanto quanto possível, algumas sequelas nunca abandonam o corpo. Hartel não recuperou o controle do joelho para baixo, o que dificultava muito as tarefas de andar e manter-se em pé. Apesar de ser uma amazona de elite, teve que reaprender muito do esporte que conhecia desde a infância, quando era treinada pela mãe.


O primeiro passo foi montar e desmontar do cavalo, o que só era possível com o empurrãozinho de algum ajudante. Uma vez sobre a sela, sofreu várias quedas até refazer a técnica para manter-se estável sem a ajuda das pernas, que não tinham a força de antes. A atleta ainda não sabia, mas seria uma fonte de inspiração para a equoterapia, método de estímulo à saúde física e mental que seria consagrado décadas mais tarde.


Hartel atravessou toda a convalescência com Jubilee, uma égua da raça alemã Oldenburg, que ela já montava antes da doença. O animal foi comprado pela família para dar plácidos passeios no campo e ninguém imaginava que serviria para competir. Só que a especialidade da dinamarquesa era o adestramento, uma modalidade que exige menos força física e mais conexão e sincronia entre o ser humano e sua montaria.


A dupla tinha nível suficiente para ir aos Jogos Olímpicos de 1948, em Londres, os primeiros após a Segunda Guerra. O hipismo olímpico, no entanto, ainda era fundado sobre as bases militares e aristocráticas com as quais nascera, e a competição era quase exclusiva para homens de farda. Os únicos civis permitidos eram os gentlemen: praticantes enquadrados no conceito de amadorismo exigido pelo Comitê Olímpico Internacional, por não precisarem ganhar dinheiro com o esporte para sobreviver. Segundo uma definição da Federação Equestre Internacional, de 1934, um gentleman era “qualquer cavaleiro com uma educação honrada e o savoir-vivre [a etiqueta] necessário para ser recebido na boa sociedade”.


Até 1948, o hipismo olímpico só permitia militares de alta patente e gentlemen: “qualquer cavaleiro com uma educação honrada e o savoir-vivre [a etiqueta] necessário para ser recebido na boa sociedade”, segundo a Federação Equestre Internacional

Já a discriminação entre os militares ocorria a nível hierárquico. O evento só era aberto a oficiais, ou seja, aqueles que podiam chegar ao topo da carreira de suas corporações. Era proibida a participação de praças, a classe militar que abarca todos os soldados e as patentes imediatamente acima.


Um sargento do Exército da Suécia, Gehnäll Persson, foi promovido a tenente apenas três semanas antes da Olimpíada de 1948, para estar apto a competir. Foi a Londres, ganhou a prova de adestramento por equipes e, voltando para casa com a medalha de ouro, foi rebaixado novamente a sargento duas semanas depois. Quando a manobra foi descoberta, em 1949, a equipe sueca teve a vitória anulada.


O episódio abriu os olhos dos dirigentes do hipismo para a insanidade dessas proibições e liberou a inscrição de qualquer civil ou militar. Desde que fosse homem. O público feminino continuava excluído tanto da prova de saltos quanto do CCE, o Concurso Completo de Equitação, que combina saltos, adestramento e a corrida de cross-country.


As mulheres foram finalmente autorizadas, contudo, a participar do adestramento, justamente a prova de Hartel. E assim a dinamarquesa embarcou para Helsinque, na Finlândia, rumo às Olimpíadas de 1952. Ela e outras três amazonas seriam as primeiras mulheres da história olímpica a enfrentar homens – e havia 23 deles inscritos – de igual para igual.



A prova de adestramento exige que o atleta e seu cavalo executem uma série de movimentos pré-determinados diante dos árbitros. Hartel e Jubilee tomaram o picadeiro, fizeram uma apresentação formidável e tiveram pontuação inferior apenas à do sueco Henri Saint Cyr, que acumularia quatro ouros olímpicos na carreira. Menos de oito anos depois de ser paralisada pela pólio, Lis Hartel era vice-campeã olímpica.


Na cerimônia de premiação, a amazona precisou de uma ajuda de Saint Cyr para subir ao pódio e, uma vez na plataforma, equilibrou-se custosamente sobre as pernas fracas para receber a medalha e ouvir o hino. Testemunhas contam que a cena foi das mais emocionantes já vistas numa Olimpíada.


A história da recuperação correu o mundo, e Hartel aproveitou o sucesso. Recebia tantas cartas de admiradores que precisou contratar uma secretária só para cuidar das correspondências. Ela e Jubilee passaram a década de 1950 viajando e exibindo-se em eventos prestigiados na Europa e nos Estados Unidos. Pelo caminho, colheram mais uma medalha de prata olímpica nos Jogos de 1956. Foi uma das últimas competições da égua Jubilee, que morreu pouco tempo depois.


Defensora da crença no poder terapêutico dos cavalos, Hartel promovia eventos para dar a pessoas com outras limitações, como a cegueira, a oportunidade de cavalgar. E foi nessa causa que atuou até sofrer um derrame em 1988, do qual nunca se recuperou por completo. Passou as duas décadas seguintes com a saúde precária até morrer em 2009, aos 87 anos.

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