Campeã nas Olimpíadas de 1924, nadadora americana foi a primeira mulher a nadar da França à Inglaterra. Duas horas mais rápido do que os homens
“Até o mais intransigente defensor dos direitos e das capacidades das mulheres deve admitir que, em competições de habilidade física, velocidade e resistência, elas devem permanecer para sempre o sexo frágil”, arrotou o jornal britânico Daily News no dia 6 de agosto de 1926. O alvo do ataque era a norte-americana Gertrude Ederle, que tentava, naquela manhã, ser a primeira mulher a atravessar a nado o Canal da Mancha, que liga a França à Inglaterra. Ederle não só cumpriu a tarefa como bateu, com sobras, o recorde masculino que vigorava à época.
O insulto do periódico não era dirigido a uma iniciante. Ederle, então com 20 anos, já era campeã olímpica e havia nadado provas de longa distância semelhantes nos Estados Unidos. Até aquele momento, no entanto, apenas cinco homens haviam cruzado as 21 milhas (pouco mais de 33 km) que separam, no ponto mais estreito, a Grã-Bretanha da Europa continental.
Filha de imigrantes alemães que desembarcaram na América no início do século 20, Ederle começou a nadar seriamente aos 13 anos. A condição financeira da família, que tinha uma bem-sucedida casa de carnes em Nova York, deu à adolescente um raro privilégio: aos 16 anos, abandonou a escola para concentrar-se na natação.
“Até o mais intransigente defensor dos direitos e das capacidades das mulheres deve admitir que, em competições de habilidade física, velocidade e resistência, elas devem permanecer para sempre o sexo frágil”. Daily News, 6 de agosto de 1926
“Trudy”, como era chamada, esperava ganhar três medalhas de ouro nas Olimpíadas de 1924, em Paris. Ela e as colegas americanas, no entanto, foram atrapalhadas pelos chefes da delegação, que alojaram as moças em um local distante da capital francesa para protegê-las da “frouxa moralidade” que diziam ver nas ruas parisienses. Com o arranjo, elas perdiam várias horas por dia no deslocamento para treinar e competir. Gertrude saiu da França com dois bronzes em provas individuais (100m e 400m livre, nas quais era recordista mundial) e um ouro no revezamento 4 x 100m.
Passadas as Olimpíadas, Ederle concentrou-se na meta de cruzar o Canal da Mancha e agendou a empreitada para agosto de 1925. As condições marítimas entre a França e a Inglaterra, porém, eram muito piores do que as que ela já havia enfrentado nos EUA. Trudy nadou bem por quase nove horas, até ser atingida por uma onda violenta, engolir água e ser pescada pela equipe do barco de apoio. Recuperada, reclamou do resgate, que levou automaticamente à sua desclassificação, e deixou claro: na próxima oportunidade, não queria ser tocada por terceiros a menos que pedisse ajuda expressamente.
Ederle aprendeu com os próprios erros para a segunda tentativa. Encomendou à irmã um maiô especial, de duas peças, com o objetivo de ganhar mobilidade, arranjou um par de óculos de aviador e besuntou a pele numa mistura de vaselina, óleo de oliva e lanolina, uma receita caseira para protegê-la do mar gelado e dos ataques de águas-vivas.
Hora da verdade
Pouco antes das sete da manhã de 6 de agosto de 1926, um pequeno contingente de familiares, jornalistas e curiosos se reuniu na praia francesa do Cabo Griz-Nez, em Calais, para ver a largada de Gertrude. As nuvens estavam carregadas e uma placa na areia aconselhava os donos de embarcações pequenas a não aventurarem-se no mar bravio.
Mas desistir estava fora de cogitação, e Trudy entrou na água acompanhada por dois barcos. O primeiro levava alguns parentes e seu treinador, encarregados de encorajá-la e alimentá-la. Durante a travessia, Ederle consumiu rodelas de abacaxi e pedaços de frango que chegavam a ela por meio de uma rede presa na ponta de um cabo. O segundo bote carregava um casal de jornalistas e até uma equipe de filmagem, uma sofisticação que mostra a importância que a imprensa americana dava à ocasião.
O início foi relativamente suave. Ainda durante a manhã, entretanto, São Pedro fez cumprir a previsão e mandou cair uma tempestade. Munidos de um fonógrafo, o avô dos toca-discos, os repórteres do segundo barco tocaram “Let Me Call You Sweetheart”, um hit do início do século, para que Trudy marcasse as braçadas no ritmo da música. Já a família a incentivava com cartazes. Alguns recados lembravam à nadadora que, em caso de sucesso, ganharia um carro conversível vermelho do pai.
O início foi relativamente suave. Ainda durante a manhã, entretanto, São Pedro fez cumprir a previsão e mandou cair uma tempestade
As correntes marítimas, fortes e persistentes, impediam um trajeto em linha reta. Na segunda metade do caminho, quase sem conseguir sair do lugar, Ederle ouviu de seu treinador um apelo para que abandonasse a prova, mas declinou.
Ao cair da noite a trupe avistava ao longe a praia de Kingsdown, em Dover, na Inglaterra, mas o martírio estava longe do fim. Antes de Trudy, vários nadadores haviam sucumbido nos metros finais, gelados e desorientados, às águas hostis da costa britânica.
Mas a americana, num esforço final, superou o trecho que faltava e alcançou a areia pouco depois das 21h40. A distância original, de 33 km, foi alongada para 56 km devido à força do mar. Mas o tempo de percurso, 14 horas e 31 minutos, pulverizou por quase duas horas a melhor marca já registrada por um homem até então. A conquista é tida como um dos maiores feitos da história da natação.
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